quarta-feira, 16 de novembro de 2016



Você me vem como uma visita inesperada de um parente de terceiro grau. Há uma certa familiaridade no encontro imprevisto, um cheiro de bolo da vó e café passado a pano, um calor fresco embaixo de uma mangueira. Mas é só um décimo da sensação. O que predomina é o incômodo. Resgatar o gosto, o aroma, o frescor, é impossível. Não sou eu quem vai te contar que você me abusou.
Você não é o parente de terceiro grau - sequer percebo que eu e ele jamais nos comunicamos para além de encontros esparsos ao longo de um decênio. A presença dele, com todas suas perguntas burocráticas, é constrangedora, mas esvai-se com sua sombra. Já a sua inexistência é maciça. Não sei como apagar definitivamente: água sanitária no cérebro? Será que eu tenho que te contar que você me abusou?
Eu lembro que o bolo era de coco e o café a gente encharcava de açúcar porque paladar amargo não pertence à língua infantil. Meu café hoje é puro. Você tinha todas as palavras doces armadas em forma de gancho para dilacerar meu eu interior. Me fez sangrar e regurgitar de maneira literal. E você não sabe mesmo que me abusou? Não há um segundo de repouso. Minha cabeça se choca contra um travesseiro de chumbo. O amor do único que me amou: violência.