sábado, 29 de dezembro de 2012

E se te escrevo um poema?
É sempre às pressas
Mudez e pensamento que se atropelam

E se te vejo?
É sempre de relance
Pela fresta de uma porta
Ao pé da ventania
Com uma resma e mãos nos bolsos
O que me dás é ninharia

E me encontro no escuro!
Ouvindo os ecos da galeria
São teus passos, te aproximas

Não sabes?
Te anunciam mas não chegas
Se viesses, a mim ganharia

E se não declaro algo incerto
É que fechastes as janelas da galeria
É um sufoco, escuto teus ecos
A dádiva, decomposta, se desfaz
Desmorona
Era mesmo regalia.

Fim

E se é o fim
Um início se desponta
O recomeço se anuncia

E se há um fim
Tu sempre me desapontas
Daí a renúncia

A morte é o fim
Todo o resto é ciclo
infindável
moroso
fechado.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Carta fechada

Quisera ser feliz com outra pessoa.
Por isso me apagara.
Nunca mais escrevi, nem ao menos uma carta. Um carteiro imaginário me acusava, figura típica simpática, bigoduda e sorridente, uniformizado em azul e cinza, com uma pasta de alça a um lado do corpo, com conselhos sagazes e multinterpretáveis.
-Nunca mais escreveu, moça. Que pena, você consegue falar tão bonito.
Não mais escrevo e não sei se é covardia ou coragem. Sei que é escolha, porque se quisesse vencer esse bloqueio eu seria capaz. Sei que é escolha, pois não submeto as sensações à análise alguma, que não ousem em mim se tornar substrato, que não se me finquem raízes! [Não analiso emoções, não reviso construções - verbais ou imaginárias].
Não sou refém dos meus sentimentos.
Se não escrevi a lápis, porque me apagas tão facilmente? Se escolhi um destinatário (e destino tão cruéis), porque me arrastar até o correio para aborrecer-me com frases esquecidas de epístolas esmorecidas?
Não, não escrevo porque não há o que contar. Não tenho palavras, nem tampouco vontade. Mas remanesço e persisto, porque agonizo de sofrer infindável. Até mesmo o não sofrer é sofrer. Significa que não posso trazê-los do fundo do poço imundo e obscuro da mente para conversarmos, meus queridos fantasmas. Sou ruído e abstração enquanto caminho obstinada com problemas burocráticos a resolver. Não mais enxergo maravilhas de novos mundos a serem descobertos, enquanto discuto possibilidades e medos com personagens recriados por minha mente, projeções de pessoas.
Pessoas são pessoas, e o que amei foram ideias. Pessoas mesquinhas enfadonhas medonhas - limitadas e controladas pela carne e pelo osso. Detestáveis. Amáveis são apenas as ideias, por mais que sempre se dispersem no ar, percorrendo o espectro de cores, permanentemente mutáveis. Chocam-se em ondas violentas, espuma contra rochedo. Água mole em pedra dura, até que eu ceda, até que me persuadam. A barreira é vencida e agora escrevo. Não mais diálogos imaginários, mas sim alguma viagem sem ponto de partida e sem destinação.
Num repente, escrevi.
-Mas não mais irei ao correio, moço. Pra que escrever cartas que nunca serão lidas? Não me venha com uma resposta inteligente agora, porque não tem resposta razoável passível de ser fornecida pela razão. Não nesse caso.
Nessa tua nova casa sei que nem chegam a entrar sequer minhas palavras, muito menos minhas cartas. Porque de ti não mais sei, como haveria de conhecer teu novo endereço? Vejo tua nova mulher regando as flores no jardim, cabelos longos e loiros reluzentes ao sol.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Considerações atemporais

Um corpo que já ficou marcado por lábios e mãos carinhosas, mas nunca pertenceu a outrém, além de si-mesmo ser-em-si.
Estéril, estéril, estéril.
A solidão é o costume, mas a maior solidão chama-se incompreensão.
Como não rimar amor e dor?
É o medo de descobrir que importa menos que deveria, não há mais peso que complemente a gravidade. Flutua, fluindo leve pluma.
Importar menos do que se imaginava possível.
Exportar-se bem não durável.
Mira-se o abismo indefinidamente. Não há nada mais que buscar, nem há gradações de preto.

domingo, 25 de novembro de 2012

Que entre os ruídos, os graves, os estrondos nada sutis e um palpitar de coração gélido seguido por suor frio, esmoreceu-se o maior espanto. E não mais se fez a história. Apagaram-se as luzes e sufocadas foram as expectativas. Da consciência da infinita solitude, seguiu-se um choro sofrido e reprimido. Do choro e dos berros a pleno pulmão, da mágoa afogada em lágrimas, libertou-se um alívio. Na paisagem morta, nos rostos indistinguíveis, a noite eterna enfim finda e silenciosa prenunciou o amanhecer, quando tons de azul-claro suavizaram o céu sombrio, atenuando aquela dor aguda. Durmamos agora, por hoje é só e havemos de descansar enquanto ainda não há sol. E sem espanto não há História.

domingo, 28 de outubro de 2012


Teu rosto,
a imagem na minha retina
tua sombra,
impressa nas noites insônes
Abra-te,
tu me dizes
Fecho-me,
atemorizada à menção do toque.
Seco-me,
e espero até a última gota
- não de lágrima, nem de sangue -
mas a de suor.

domingo, 21 de outubro de 2012

Oquidão

Escreve!, tu dize. O que tenho dizer do obsceno obscenamente calculado e dissimulado? Nada. Uma coisa leva a outra, e o ato supremo - reduzido à insignificância - simplesmente acontece como uma sucessão de atos impensados. Porque pensar me pesa além do sustentável. O que resta a fazer quando se acaba a voz?, pergunta meu algoz e libertador. Tremem minhas pernas, oscilo entre o pânico e o êxtase. Extingue-se também o pensamento. Tens olhos verdes musgo e pele morena do pântano. És pura sujeira, e em ti me desdobro, em ti e contigo afundo. És também redutível - nada. Que dizes? Não ouço e nem me importa. Não me ouves, sou a rouquidão provocada pela arrebatadora certeza da inutilidade das palavras.

Hoje não escrevo.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Esboço do Diálogo

-Acho engraçado.
-O que?
-Isso de você ficar voltando pra mim, sem querer voltar.
-Não entendi.
-Ué, acabou, mas você fica voltando. Porquê? Não é frustrante pra você?
-Não tenho essa visão das coisas.
-Bem, pois é frustrante pra mim, isso de você ficar voltando sem querer realmente voltar.
-Você sabia que eu estaria aqui, veio por que quis. Sabia que ia me encontrar.
-É, deve ser culpa minha mesmo.
-Você tem muitos outros lugares onde poderia estar. Porque não está com o Bruno?
-Porque ele foi embora.
-Gustavo?
-Bem, ele sempre está quando eu preciso dele.
-E você não está quando ele precisa de você.
-Ele me procura, aí nós damos um jeito.
Silêncio.
-E aquele cara do sábado passado?
-Um erro que não pretendo voltar a cometer.
-E eu, aqui?
-Você não está aqui de verdade. Está, mas não queria estar. Que nem quando estava comigo. Não fazia questão, flutuava em pensamento pra outro lugar. Não sei porque fica voltando, se queria tanto ir embora. Queria que fosse de vez.
-Não me procure mais, oras.
-Não te procuro, você que sempre me acha. Ou você acha que é acaso?
-Talvez tenha que ser assim, a gente buscando um ao outro alternadamente. Talvez a gente ainda se encontre.
-Não quero brincar de pique-pega com você mais.
Mais outro silêncio. Dessa vez ele não tinha uma resposta rápida, e sagaz. Desviou o olhar do dela.
Ela tocou-lhe o rosto. Ou ao menos almejou que pudesse, mas seu corpo não se moveu. Tinha medo de que o toque fizesse com que ele se esfacelasse.
-Desculpa.
O tom dela era baixinho e sincero. Não havia mais ressentimento.
-Pelo quê? - de repente, surpreso. - Eu que te devo mil desculpas, e nunca conseguirei pronunciá-las todas.
-Por não te dar compreensão, por não ter persistido ao seu lado. Não sou uma pessoa tão boa assim, sou egoísta. Não vi como te dar algo que não parecias disposto a receber. Não vi como me dar a ti, sabendo que não seria retribuída.
A dádiva, sim. Disso também era feito o amor - dar, receber, retribuir.
-Não fomos dádiva - ela continua. Talvez ele não entendesse plenamente a alegoria, não seria novidade. Nunca haviam conseguido se entender. - Fomos tragédia. Por isso esse gosto amargo em nossas bocas. - ela inclina-se e dá-lhe um suave beijo de língua. - Por isso que meu toque é hesitante e frio. - desliza a ponta dos dedos pela nuca dele. - Por isso essa sensação de tristeza que nunca vai embora.
-Por isso venho, sem querer voltar.

domingo, 14 de outubro de 2012

Zumbi

Sou vazio. Porque
Me preenchestes de silêncio
Sou ânsia, e seguro
Vivo de espera

Espreita-me vil, viloso
És murmúrio segredado
Estática do rádio dessintonizado.
Um zumbi de sentimento

Zumbido rachado, abraço partido
És corpo em putrefação
Invadindo-me as narinas
de inquietação.
-Quando eu te vi pela primeira vez, eu te olhei por um tempo. Você percebeu, mas desviou o olhar, porque?

Mania de poeta?

Perdoe-me os rodeios, é que tenho mania de poeta. Não é uma pretensão, pois que não finjo, apenas aspiro a algo que já fixei além da linha do imaginável e do alcançável. Nunca serei, não há momento em que já fui, fico presa no eterno devir. Venho falar-te novamente acerca da incomunicabilidade. Não a minha, jamais a minha. Falo de ti, de tua falta, e como estás em falta (não seria o mesmo?). Mania de poeta é justamente inventar onde não há matéria, plausibilidade, coerência, argumentos para uma discussão. O meu silêncio é justificado, frustro-me pois transformo em poesia. Ou tento. Que me basta saber que não vieste pois teu ônibus não passou, ou porque reencontraste um velho amor numa esquina? Sei que não chegaste, não chegas jamais, e isso consome e corrói e abre inúmeros buracos. Sinto aquela doce promessa na ponta de tua língua, aquela que não professou por meio de palavras.

Sinto ainda a permanência da pressão que me imprimiram seus dedos sob a minha pele.

Fantasia

Ainda insisto em crer que é você que não quer me deixar ir embora. É o seu silêncio reticente e seus olhares de soslaio, são as inúmeras possibilidades que se encontram no intervalo entre sua aparição abrupta e sua despedida esquiva. Chega mais perto de mim, eu anseio e temo. Não consigo lhe ser indiferente, por mais que me enfureça, sufoco você em sonho e em pensamento, esfaqueio com o ferro fundo, esquartejo. Mas em mim sangra você.

Sou um meio-termo que não me beneficia em nada, sou nem poeta, nem ator. Talvez um pouco dos dois, quando ignoro sua presença no canto da sala enquanto danço convulsivamente. Quero sacudir essas ideias que não sei traduzir, quero que vão para bem longe daqui. Que saiam num jorro de sangue pela boca e pelo nariz. Que não sejam ainda essa paixão que perdura, que resiste ensandecida. Que não tem motivo. Que não tem alimento. Que não tem estrelas, nem borboletas. Só a espera, e espero só, e sem motivo. Porque tenho sempre às mãos esse estetoscópio falso, a luneta de lentes biconvexas, sempre ávida por escutar os teus sinais. Assim forjo minha fantasia, agitando as asas sem te envolver, pois tenho consciência da obscenidade dos meus desejos. Sufoco-te em sonhos, e sufoco a mim mesma nessa realidade imaginada. Sufoco, pois seu ir-e-vir ( ah! que inconstância do devir) me asfixia.


http://www.youtube.com/watch?v=SZ26_buhHfI

sábado, 13 de outubro de 2012

Eis que me ocorre num repente que penso amá-lo. Acho que o amo. Não digo isso para que ele saiba e que seja obrigado a mim, para que ele se compadeça, para que os outros se compadeçam. Revelo timidamente e com assombro, que só posso amá-lo. Não o amo pelo que é, amo porque desperta algo em mim. Algo que não vai embora nunca, pois que ainda não foi. Amo porque em mim permanece, de um modo insano e injustificado. Porque basta-me vê-lo e é como se meu mundo não mais fosse inalterável, silencioso e vazio. Há um significado, ao menos pra mim. Não espero algo, apenas sei, sei que sinto. Será que basta? Basta, porque me afeiçoei o bastante. E vem do ar um sentimento que, ainda que incerto, arrebata-me certeiro e não sei ao certo a razão. Se é insanidade, se é wishful thinking, intuição. Não acabou, porque nunca acaba. É inexplicável, mas não complexo, porque não traduz-se em palavras. É uma certeza do coração, primeiro impulso e, portanto, o mais verdadeiro. O que é verdade já não mais sei, porque verdade não se delimita assim arbitrariamente e fomos compostos de inúmeras mentiras e meias verdades, uma soma que não desemboca numa verdade absoluta. Temos verdades no plural, assim como liberdades. Ainda assim, dissimulamos e sentimo-nos presos.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Esboço da Magia

É encantamento. A única forma de compreensão aceitável aos meus olhos é a magia. Foi teu feitiço. Foram inúmeros feitiços. São rajadas dispersas de luz, são sombras úmidas que alcançam meus pés, são ataques vindos de todas as frontes. Sou eu querendo sentir tudo, absolutamente tudo. Sou eu querendo reduzir-te ao nada, resistindo debulhando resfolegante esfolada transviada à mudança. Eu, que passei por tantas mudanças, que eu mesma transladei e rotacionei para retornar ao ponto de partida. Que agora acredito na magia. Só pode ser feitiço. Agora faço uma simpatia, uma amarração. Porque é tudo excessivo, muito claro e muito poderoso. Amaldiçoo e abençoo simultaneamente , profana e sagrada. Maledicente e sacrificante. Derramo meu sangue da ferida aberta em seu túmulo - até a última gota, até a última gota. Bem, era a intenção, mas por ti já não sangro. Cambaleio, alterno meu peso entre os pés, bamba. Mas não caio, pois que tenho outras forças que mantém-me de pé. São inúmeros feitiços, por vezes se anulam. Tiro os pés do chão e levito com a força do pensamento, tudo é névoa, cinzenta e plácida, espessa e inescrutável. Espero pacientemente, imagino que quando desfizer-se a névoa, revelar-te-ás. Serás outro, serei outra, talvez na clareira, na sombra fresca do bosque, ao som dos pássaros dissecados, ao som dos violinos e dos tambores, ao som do silêncio; ainda há contiguidade, me és familiar. Pergunto-me que forma terás assumido, não mais serás o lobo à minha porta, talvez lince, talvez jaguar. Metamorfoseado nos conceitos, categorias, gênero. Metamorfoseado e transmutado em si mesmo, minha oposição e meu complemento. És magia e feitiço, parte e todo.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Lembrancinha

Serei condescendente. Guardo um souvenir de você, enquanto espero pacientemente ouvir alguma notícia. Talvez se vá com a mesma rapidez que chegou. Eu mesma pensei ser apenas um estranho com quem cruzei na rua. Interessei-me como me interesso por todas coisas que respiram, olhei-te de soslaio e depois virei a cara. Te vi e fingi não reparar. Mal sabia que me vias também. Mas quão bem me enxergas agora? Bem ouço dizer que sou intransponível, e terás que olhar por muito tempo em meus olhos para poder discernir a tensa fronteira entre minhas pupilas negras e os olhos castanhos escuros, que tendem a mesclar-se, fundindo-se na escuridão.
Guardo um pedacinho teu, ao menos por enquanto. Se não vens, amasso, rasgo e jogo fora, de modo a ter espaço pra outras lembranças. Não és reciclável, talvez sejas perecível - espero que ao menos não sejas inflamável.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

O mendigo implorava, mas as pessoas não se importavam. Eu relutei mentalmente por alguns segundos, ainda que continuando ao ritmo de meus passos. Cheguei a olhá-lo de relance - nunca nos olhos - vi suas roupas imundas, seus dentes podres. Pensei se tinha algum trocado, mas poxa, só tinha uma nota de dez. E ele pedia a Deus, a todos os santos, aos meros mortais. Sua voz era rouca e, pouco eloquente, muito ansioso, atropelava vogais. Parecia desesperado. Mas eu não sentia seu desespero. Eu me preocupava com coisas outras - amor, liberdade -, eu tinha aquela fome como ideal, não a sentia no estômago. Não me preocupava com o que comer no jantar, e sim se você iria voltar a tempo e conversar comigo sobre seu dia. Pisquei, vi seu rosto em minha fronte, sua expressão desafiadora e o mendigo esvaiu-se de minha memória. Montei um cenário para nós, e você ainda se preocupava em infiltrar em minha mente. Mal sabia o enorme espaço que já ocupava como delegação oficial, e queria ser espião sorrateiro. Eu daria apenas um sorriso apologético como resposta ao seu costumeiro "O que você está pensando?"

-Às vezes me pergunto se é porque seus pensamentos são tão complexos que você não sabe traduzi-los para os leigos.

-Na maior parte do tempo, é que não penso em nada.

Não penso no que terá para o jantar, sei que vai ter comida. Mas tal certeza não me basta. Quero amor e quero liberdade. Penso em comida, mas em meu modo burguês [filha de profissionais liberais pseudo intelectuais], buscando o prazer gastronômico, fazendo das refeições horas de lazer, não de realização da necessidade fisiológica. Não uma necessidade, jamais necessidade. O que eu realmente precisava era de amor e liberdade. Não pensava em dinheiro. Mas precisava de roupas novas, que não estivessem impregnadas com seu perfume, precisava de sapatos novos, que não estivessem classificados por seus adjetivos, sapatos que não fossem "engraçados".

"Para superar um amor platônico, só uma foda homérica", dizia o grafite na parede branca.

Mas sei eu se ao menos Platão amou e Homero fodeu? Não, pois não são sequer homens reais, ao menos não são pertencentes à minha realidade. Platão e Homero não eram burgueses, que crime seria classificá-los na categoria de homens de nossa época! [Não sabemos nem se Homero foi uma pessoa, não sabemos se Platão amou]
Os pedreiros passam por mim e também evito encará-los de frente. Fixo um ponto no horizonte e continuo obstinada, enquanto lacrimejo. Devem atravessar o rio, rumo às suas casas nesse final do dia. Trabalham em nossas casas, e depois atravessam o rio para o cheiro de esgoto e moscas varejeiras. Sou incapaz de olhá-los nos olhos, enquanto uma ânsia invade meu ventre, e não é a fome: terá você voltado para casa? Ou também atravessou um rio?

Sinto fome. Olho os mais diversos alimentos e ingredientes no armário. Tenho preguiça. Pego um pão, abro com os dedos e passo um pouco de manteiga. Forro o estomago, mas ainda não me sinto saciada e você não está aqui. Vejo o dia se desvanecer observando, do sofá, a sacada. Preciso de roupas novas, mas não ligo pra dinheiro. Minha necessidade não vem do desejo de ostentação, e sim de um apelo desesperado à renovação. Se não posso renovar meu espírito, queria ao menos mudar minha imagem. Tentar ser outra, já que as máscaras que mais importam ao mundo burguês, e não a questão da fome.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Um ato de bravura. Lapso na lucidez. Assomo de coragem. Surto, estupidez.

Tudo flutuava, as pessoas envoltas numa aura etérea. Só o teu perfume parecia real, invadindo-me as vias aéreas com violência, deixando-me intoxicada mais uma vez.

sábado, 15 de setembro de 2012

Acordei de um sono tão leve, parece-me que não cheguei a adormecer em primeiro lugar. Remanesço, permito-me recordar; adormeci pois estive em outro lugar. Uma tribo de bestas balbuciantes, o sombrio fondu au noir, pitch-black [o desconhecimento de sua própria língua], ermo escuro inexplicável - irrefutável - de suas pupilas. Um contraste, o fúnebre e intransponível da janela pra tua alma nadando no mais límpido e aquoso verde. Uma tranquilidade fingida, uma placidez de continuidade. Porque pensas que me vês?, tuas pupilas estão fechadas, não entra luz.

Não abri os olhos porque a claridade havia de me cegar, eu que cultuei o escuro por tantos meses. Não estava pronta para a mudança, mas estive sendo impelida a ela, não havia como negá-la. Contorci-me incessantemente durante o quase sono, já estava dolorida e transpirava exaustivamente. As bestas da tribo dançavam, eu bem sentia o som das batucadas, mas permaneci imóvel. Onde estava aquela fascinação que tornou-se arrepio na espinha? No meu caso fascínio era sempre interesse breve e supérfluo, nada me prende. Nada me prende, só o meu sofrimento.

Os barulhos de britadeira e o calor abafado do quarto com janela e porta fechadas começava a sobrepor os tambores tribais e o crepitar da fogueira. Acordo de meu devaneio com uma certeza.

As sombras dançam ao meu redor - se são distinguíveis é porque há luz.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Soçobrar

soçobrar
v. tr.
1. Virar violentamente de baixo para cima, voltar; abismar, perturbar.
v. intr.
2. Virar-se de baixo para cima; naufragar, abismar-se.
3. [Figurado] Perder-se, ter mau êxito; desanimar, perder o ânimo, esmorecer.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Hugo

Hugo não me amava. Não é possível que se acredite nesse papo furado de que ele me amava de uma maneira diferente. Eu sei. Porque eu ficava febril quando passava algum tempo que nós não nos víamos, porque eu que fiquei de cama todas as vezes que ele tinha trabalho demais para pode me ver, porque eu entrei em colapso nervoso ao perceber que ele não se esforçava nem metade do que eu me esforcei. Tantas energias gastas em vão, e ele ainda escapulia para ir no bar tomar uma cerva com os brothers. Dizem que é nessas coisas que a diferença entre homens e mulheres se mostra de maneira brutal, quando eles precisam desses pequenos escapes do stress que aparentemente nós provocamos, e nós somos incapazes de compreendê-los. E eles não são capazes de compreender porque isso nos magoa desse tanto.

O ponto é que ele não moveu uma palha. Continuaria comigo, mas não por amor, sim por conforto, por imobilismo. E o desespero de minha paixão não pôde lidar com tamanha crueldade. Sim, pois era em sua infinita gentileza que repousava a agudeza de sua crueldade. Era tortura. Fingia que se preocupava, fazia-se de atencioso, incorporou o próprio Shakespeare da primeira vez que ameacei deixá-lo, equiparou seu amor à imensidão dos céus e dos mares, elevou-me ao pedestal de Julieta, comoveu-me e conquistou-me com suas palavras. Mas me perdeu justamente por sua falta de ação. Sua falta de sofrimento, de intensidade, de paixão.

Nunca saberei se fui insana, deixando um homem tão bom e tão realizado escapar. Sim, era o que todos diziam. Perdi um partidão. Ninguém entenderia que foi Hugo quem me deixou escapar. E eu me demorei o máximo que pude ao trancar a porta, brincando com o molho de chaves e forçando um sorriso para ele. Meus cabelos caóticos e os lábios retorcidos deviam dar-me a aparência de um espantalho, tenho certeza. Mas ele permaneceu inerte, olhando-me com seus olhos aquosos. Nunca derramou uma lágrima, outro indício de que não me amava. Eu que passei tantos dias chorando por ele, chorando por qualquer coisa que me lembrasse a tragédia que era amar tão desesperadamente e ser tão ignorada. Ele conseguiu sorrir. Certamente, foi um sorriso triste, já nostálgico pelos afagos que eu não mais concederia, pelos gemidos insanos que ele não mais ouviria, pelas únicas 5 receitas que eu sabia cozinhar (3 massas, 1 assado e 1 sobremesa) e que ele não mais apreciaria, meio enjoado mas sempre solícito, soltando sempre um Hm, que delícia, amor que só me convenceu da primeira vez, depois passou a me irritar mais do que o silêncio que dominaria o resto da refeição.

Hugo foi o único que partiu meu coração dessa maneira inexplicável, irremedável. Talvez daqui há alguns anos eu tenha de alterar esse trecho da minha história, e possivelmente agora sou incapaz de pensar com objetividade. Já tivera outros envolvimentos amorosos, mas ninguém fora tão cruel em sua gentileza. Eu padecia de calafrios mesmo estando em seus braços, mesmo sentindo sua respiração em minha nuca - por mais que seu corpo tivesse estado sobre o meu há poucos minutos. Hugo - a pessoa real, Hugo Gouvêa Barbosa - era um cadáver. Movia-se moroso, meditando sonolento. Mormente, era zumbi, sonâmbulo, trêbado. Executava suas funções no modo automático, e agora mudo de ideia e digo que se achegava mais a um robô do que um semi morto. Mantinha sua relação comigo no modo automático. Chegava a escutar um quê de voz eletrônica enquanto eu escovava meus dentes e ele chamava Amor, vem pra cama. O problema não era a mesmice, era a falta de encanto. Estavam os dois tão intrinsecamente interligados?

Então, porque eu sentia essa falta filha da puta dele? Porque pensei em eu própria abrir meu peito com um facão, para sentir a vermelhidão e ouvir uma pulsação que andava demasiado baixa? Como consegui passar duas semanas de cama, só saindo para executar minhas necessidades fisiológicas e provar refeições parcas e absurdas? (uma cenoura, uma barra de chocolate, um saco de amendoim). Só podia ser porque eu o amava de verdade. Hugo não ficava de cama. Ele pestanejava, levemente surpreso como assim você quer me deixar? mas então conformava-se com o acontecido, simplesmente. No instante seguinte. Não contestava. Não impediu-me de partir. Não deixou escapar sequer um lamento, um soluço esganiçado, uma palavra chula. Raramente xingava quando estava falando comigo. Por isso acho que era um robô, sempre tão controlado, tão calculado, cabelos escovados, camisa social bem passada, fazia o nó da gravata e beijava-me com lábios refrescantes de Colgate.

Achei que estava partindo rumo a algo melhor, maior. Que conseguia ver o universo por muitas perspectivas, em vez só daquele mundinho fechado em si que eram as tardes de domingo e as noites pacatas naquele apartamento. Qualquer coisa seria melhor do que o fato reiterado comprovado diariamente de que ele não me amava. Livrar-me-ia da angústia juvenil, dos surtos psicoses neuroses diários, dos choros torrenciais abafados no banheiro, com o chuveiro ligado. Claro que ele me escutava, apesar de tudo. Mas nunca disse nada, só me envolvia em seus braços e beijava repetidamente meus ombros e minha nuca. Hugo não me entendia, mas isso seria facilmente perdoável se ao menos me amasse. Talvez não me entender o carcomesse de maneira bruta, e ele parava no ponto inicial de sua incompreensão para não deixar que eu o consumisse com meu desespero, para que eu não o engolisse, para que ele não passasse a enxergar o mundo em tons sombrios como eu enxergo. Todo seu sistema haveria de ruir, pane, curto-circuito. O motor dele estava fundado em suas crenças simples de classe média, enquanto conseguisse ter seu bom apartamento, ter um bom carro, um bom emprego, poder tomar umas cervas com os brother, assistir o jogo do Flamengo, viajar pra praia, ter um bom plano de tv por assinatura... Como era possível que eu o amasse?

Era porque eu queria ser como ele. Não via nada de errado em ser como ele, almejava aspirava desejava ávida impaciente sôfrega bêbada louca drogada maluca pirada piranha descabelada caso de hospício. Mas por alguma razão eu não era que nem ele, eu era eu. E ele não tinha sido comigo como eu desejei que fosse. Pra falar a verdade, ele não deixava nada faltar. Sempre atencioso e gentil - em excesso, em demasia, em descomedimento. Como que por costume. Como que por boa educação, como se eu fosse uma criança precisando de cuidado e supervisão. E bem, pelo modo como agia - e ainda ajo - talvez seja isso mesmo. Mas não buscava nele um pai, e sim um amante, não queria um supervisor, e sim um companheiro.

Talvez Hugo me amasse. Mas se ele amasse com certeza, teria eu sequer dúvida disso? Não devia sentir o amor emanando de seus olhos, expelido de seus poros? Eu parti em desvario, quis voltar no segundo em que cruzei o corredor, mas conhecendo Hugo, sabia que ele não estaria esperando perto da porta. Não, ele teria no máximo suspirado pesadamente, e se dirigido à cozinha para terminar sua xícara de café antes de partir para mais um dia enfadonhamente programado na burocracia. Ah, mas ele era um homem importante!

Se Hugo me amava ou não, não é nem mais a questão. Pergunto-me se deixá-lo foi ato de loucura ou de compaixão, e não chego jamais à uma resposta! Quantas noites de sono Hugo já me tomou... Se fosse só isso. Ele tirou também minha perspectiva, minha risada pelo nariz que sempre saia com muita facilidade, minha confiança em mim mesma. Quisera eu ser como ele, um bem sucedido burocrata. Eu sei que não escolheria uma doida como eu como companhia. Não, eu me casaria com uma menina simples de cabelos longos que já saberia o nome dos nossos dois filhos e do cachorro. Sei que tudo que ele me tirou, foi porque eu joguei pela janela. Hugo jamais tiraria algo de alguém, ele é bom demais, muito íntegro, certinho.

Mas ele me deu uma tragédia para escrever. Agarro-me a meu próprio drama, aninhando-o junto a meu peito como a mais amada cria da prole, exalo seu perfume e agora o deixo fluir pelos dedos. E agora vejo como sou banal, e nem padeço por um motivo original, nem de maneira nova. Agonizo, mas não rastejo.

sábado, 8 de setembro de 2012

Contar, sempre dificultoso

Pra que contar, se não vão entender?

A cada dia que passa penso que não há o que se entender. O nó está desfeito, eu o desatei com minhas próprias mãos, ao mesmo tempo em que o afrouxava, o aperto em meu peito se intensificava. Mas não posso clamar de volta o que já não é mais meu. Ah, e nunca senti que fosse. Talvez porque não tenho sentimento de posse, não sou de demarcar o território. Só que seu olhar no meu era pra mim.

Quero-te de volta tão somente à medida em que és apenas uma figura que se distancia rumo ao horizonte infindo, impalpável. Quando te aproximas, vens para me envolver-me num abraço frouxo, numa aura fosca. Não sinto o impasse do irresoluto: não quis tentar quando ainda me era possível, e agora já és intransponível - e eu não deixo meu orgulho, só posso me agarrar a ele nessa solidão perpétua. Estamos cansados. És mais ideia fixa que paixão.

Há o que contar, não estará esgotada essa história? Se pudesse, escreveria o recomeço, mas temo não ter os artifícios literários necessários para tal. Temo, acima de tudo. Contento-me com o pouco que já conquistei, afastamos a estranheza e agora sorrimos. Mas seu abraço é frouxo. Mal me tocas e num repente já soltaste. Estou intangível? Já soltou. Ainda estou apegada.

Mas toda volta é fracasso, admitir os erros, ter de confessar crimes não cometidos com o intuito de alcançar alguém que teme-se não estar mais lá, sentido-se da mesma maneira "ainda". Porque sendo sentimentos tão frugais, haviam de permanecer?, virando substrato, subsídio. Vais embora sem despedida - porque permanece essa sensação de que fui eu que te deixei escapar? Talvez também peque por abraços frouxos, e minha testa não mais se encaixe perfeitamente na curva de seu pescoço. A muito custo aprendi que não devia ter dito "Estou cansada, vou-me embora" e sim "Estou cansada, leve-me para casa".

Não vou contar, nem para ti. Guardo junto a mim esse sentimento disforme e indefinido, essa brisa refrescante que foi poder sorrir e ter meu sorriso retribuído novamente.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

No Balaio

Então conversamos sobre perspectivas de futuro. Você ávida por fumar um baseado, eu matando minha aula. Não consegui me forçar a descer do carro, atravessar o corredor, adentrar o anfiteatro. Por algum motivo, a fenomenologia aplicada à filosofia da história não me parecia tão imperdível assim, possivelmente porque eu não havia entendido porra nenhuma daquela merda. Também não me esforcei, arrastei meus olhos pelo texto, incrédula e preguiçosa.

Não escrevi um livro ainda. A esperança era tão grande há até poucos anos atrás, e mesmo confiança em mim mesma. Não é que não sinto mais o potencial, a questão é a esperança, a finalidade que eu via em se fazer coisas, em ser realizada, em ser aprovada, em ser reconhecida. Foda-se essa merda. Abracei a mediocridade e sinto-me confortável assim. Porque as pessoas recriminam tanto o confortável, o cômodo? Ah, as expectativas foram todas deixadas para trás. Não, não me preocupo com o futuro.
Não quero ter filhos. Não quero criar uma pessoa, ter alguém que dependa de mim, ter alguém a quem eu deva oferecer consolo, quando sei bem que não há alento nesse mundo. Conheço algo efetivo: um abraço, um afago, um colo. Mas é um calor momentâneo, e o fim do momento sempre traz o desespero.

Poderia plantar várias árvores, assim compensaria os livros que não escreverei e os filhos que não terei. Encontrar-te-ia no Balaio, assim como fora planejado, e tentaríamos esgotar nossos assuntos, sempre inesgotáveis. Nossas perspectivas, ainda mais desoladoras. Você fumaria todo seu maço de cigarros, eu pediria uns tragos. Não mais que isso. Por alguma razão, ainda insistia em continuar respirando.
Será que ainda lembraríamos de nossos grandes amores da juventude? A profecia havia de se concretizar (ah,a self fulfiling prophecy of endless possibility ), e você nunca mais amaria alguém como o amou?

Eu me recuso a corroborar com isso. Bem, concordo em parte, o clichê nem por causa de sua característica rasa e repetitiva deixava de ser válido: primeiro amor a gente nunca esquece. Ainda mais um amor como esse. Mas amor a gente sempre encontra, mesmo na sarjeta, mesmo nas desconfianças, mesmo na recusa. Amor nos é negado, amor nos é dado sem que queiramos responder. O amor nunca é o amor dos livros, dos outros séculos, d'O Banquete do Platão e, ainda assim, em diversos momentos apresenta-se em algumas dessas formas. Possivelmente em retrospecto. Possivelmente na passagem da realidade à narração, à estrutura início-meio-fim. Até que compreendi o que o cara da fenomenologia estava falando, mas não consigo mais ver a aplicabilidade, não consigo mais ver um sentido - em nada.

Você sabe que eu acredito que no fim tudo é trágico e, depois do fim tudo é vão. Fica aquela lembrança, aquele sorriso, aquele orgasmo, que seja - fica uma sensação muito ruim, a dor da ferida fantasma, cicatriz que insiste em queimar ou então a idealização.

Pra mim nunca ficou uma amizade, não vinda do amor consumado. Daqui há alguns anos, quando estivermos conversando no Balaio, será que eu terei conseguido fazer de um ex-amante um amigo? Amigos tornam-se amantes com relativa facilidade. Será que terei compreendido que a reversão é inescrutável? Teremos nos tornado indiferente à nossas perdas? Ou ainda estaremos scratching our eternal itch, a twentieth century bitch?

Indago-me se nos importaremos quando eles surgissem com suas mulheres, talvez até recebessemos convites para os casamentos respectivos. Suas simple girls, modelos perfeitos que falhamos em ser. Falhamos na tentativa, ou na falta de tentativa? Saímos avessas ao modelo, mas seria isso irreversível, negativo, não atraente?

Não sei, nunca consegui me reduzir dessa maneira. Não me vejo simple girl desde pelo menos os 12 anos, quando era uma garotinha que queria ter seu primeiro beijo. Mas, ainda assim, eu queria tanta coisa além disso, para além do romance, eu queria a aventura, a ação, o suspense, o terror!

Talvez então eu recusasse uma última tragada do seu cigarro e dissesse:

-Quisera eu nunca ter crescido. Perdi meus sonhos no meio do caminho. Um dia já pude ser tudo o que quisesse, agora não tenho mais nem o querer. Mesmo quando quero o nada, sou impelida a esse mundo hostil cheio de obrigações e problemas.
Esse é um texto ingênuo e hipotético, por essência. Mas seu próprio processo já me foi doloroso como os partos pelos quais não pretendo passar.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Uma insustentável leveza

Agora escrevo mais porque sinto em plenitude o turbilhão. Se sigo o turbilhão, ah como vivo! Escrevo mais porque vivo, descrevendo mais do que ideando; sentindo o peso de um toque, o corte de uma faca, a ânsia da coisa errada, sabendo como se deram e como valeram. Descrevo-los para mantê-los em mente, não perdê-los de vida. O saber de que viver é bom é o mais valioso dos saberes! O pensamento é tão cheio de complexidades, mas a ação é simplória e só requer força. Um sopro.

O sopro que deixaste escapulir quando cochichaste em meu ouvido, que fez com que vibrasse a pulsação sanguínea numa frequência superior. Se a força motriz vem de outrem, como ser livre? Mas ser livre não é ser só, ser livre é interiorizar essa força e passá-la adiante, em um impulso irrefreável, inconsciente ainda que pensado e calculado.

Ele disparou, impiedoso. Acorrentou-me mas não tomou-me para si. Liberto-me com a força de um universo. O amor continua, a esperança persevera, como um empuxo. Qualquer peso só complementa a gravidade, e quero ser leve leve leve, a ponto de flutuar! Deixo, então, o amor se dissipar. Ele persevera, mas não mais me pesa sobre os ombros.

O que dizer?

O que dizer? Nunca me senti tão amada, e também nunca me senti tão livre. Não tenho alguém, tenho toda gente que já conheci e, ainda assim, tenho a mim mesma. Não tenho direção, mas uma coragem inenarrável, insuperável surge em minhas mãos. Tenho o poder da criação, ainda que escolha não utilizá-lo. Por muito tempo olho para a parede, observo uma paisagem imaginária, desperdiço, vivo plenamente minha vida burguesa. Sou filha de meu tempo, afinal.

Usurária, usurária!, exclama a consciência. Quero tudo de volta e em dobro. Não sou de me dar, por vezes me empresto. Terás um momento e é bom que dele não se esqueças. Posso enforcar-me com correntes no ato da luta pela libertação, mas não trancarei conscientemente meu coração.

Você me escapuliu em questão de instantes. Não é que tenhas fugido, eu que o expulsei, ainda que sem forças, ainda que sem compreensão. Não aprecio àqueles que não me apreciam, parece discurso e bobagem, mas foi lição bem aprendida, SS em histórico escolar.

Nunca me senti tão amada - e tão mal acostumada. Esperneio quando não ganho atenção, é meu jeito de brincar. O amor materializa-se em presentes, mas também em gestos. Aquela ligação, aquela frase, aquela presença; o afago no escuro, a espera enfim finda, todos habitam permanentemente meu corpo e transbordam em correspondência.

E, se tudo isso me parece insuficiente, inalcançável, se nada me atinge - ou acaso me atinja em demasia -, Clarice e Virginia me entendem. Ah, a alegria mansa, a felicidade natural!

[E você também, Raquel. Ao menos quero mais que tudo que me entenda]

É na solidão que me esbaldo, que sou plena. Caso me for fragmentar mais uma vez, espero ao menos despedaçar-me em milhões de pedaços, num estatelamento irreversível, ser acidente de trânsito e não placa de pare!, virar areia, poeira cósmica - explosão orgásmica.

The amazing sounds

Você, menina
De sorrisos joviais
Juventude pueril

Você, dissmulada
De gemidos quentes
Enfim, madura

Puxe-me para perto
Arranque-me o couro
Faça-me eterno
Com eternidade de momento

Que ecoem indefinitamente
Os espetaculares sons
Não da poesia, da música
[não sou poeta]
E sim do êxtase do corpo
e da mente.

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Amor tardio

Meu amor é sempre tardio, isso porque tenho vocação para sofredor. Recuso-me a lidar com a imperfeição do real, a confusão na comunicação humana, a falsidade do toque. Não insisto em ficar batendo com a cabeça contra a parede. As coisas deviam ser simples, e simples sempre foi-me ideá-las. Minha mente tem a chave, abre portas (comportas) e faz as pontes. Apago todas suas imperfeições, meu mais querido amigo imaginário, e por isso és tão vazio. A imperfeição é um charme que devia ser apreciado.
Pensei numa solução. Teria de apagá-lo, porque queria que fosse possível voltar ao início. Assim poderiam voltar os tempos em que "como você vai?" era uma pergunta que eu lhe dirigia com inocência, com interesse amigável; não mera função fática ou abertura de interrogatório.

Fora do tempo

Hoje quero sair só? Não, quero ficar em casa, em paz, com minhas músicas, meus livros, minha cama. Conhecer gente nova só ano que vem, porque o ano do jeito que está, com todos os dias fora do lugar, todos os sentimentos tardios que não consegui sentir, todos os atropelos de palavras, os desencontros das iniciativas; eu nem tento mais. Tudo se solta e desgruda das estruturas, subindo à superfície. O que ocorre vem num turbilhão envaidecido, vem como as ondas, não para varrer a praia, mas para me bagunçar: eu, que só queria ser una, que só quis ter moral, só quis ser certa. Nem sei mais qual a coisa certa a se fazer - se é não conseguir o que quero, então desisto. Agora caminho errante, isso quando caminho, quando não me arrasto sem direção, paro no meio da rua e penso "o que é isso que devo fazer mesmo?". Quando lembro-me de minhas obrigações, não consigo obrigar-me a cumpri-las. Tudo parece vão. Eu estou fora do tempo.
Todos meus dias são déjà vus, a mudança interior vem em ondas, em surtos psicóticos que me impedem de sair à luz do dia, que trancam meu quarto, que fazem de mim e minha cama um corpo único. Nada mudou, todas as salas estão no mesmo lugar, as pessoas continuam falando as mesmas coisas. Estou vazia. Como conhecer novas pessoas sem interessar-me? Além disso, como interessar os outros, interessando-me pelo nada? O chão é frio e sujo, nem por isso o rejeito, assento-me sem forças e observo o dia passar. A vida acontecendo, não pra mim. O pior não é ter sido deixada para trás, e sim não ter forças para me recuperar, para tentar alcançá-los.
Pego o meu café e sento-me em silêncio ao fundo da lanchonete. Não quero ser vista, camuflo-me com roupas cinzas e alheio-me frente ao acontecer da vida com fones que martelam o tímpano com melodia suave. Mas trago-o de volta para que possamos ter uma conversa franca, pela primeira vez.
"A vida não é um filme. Você tem de submergir".
Mas porque a vida não é um filme?
A arte imita a vida ou a vida imita a arte?, a professora indaga. Arte emite vida!, exclamo sôfrega; mas, infelizmente, as pessoas não vivem artisticamente, e sim de maneira formulaica. As pessoas dissimulam, mas não com a leveza, a graça, a paixão e a beleza da arte. Ninguém se esforça, todos estamos tão cansados.
"Porque a vida não é como os filmes, ao menos? Terei mesmo de escrever esse nosso diálogo, colocar atores para contracená-lo e pedir para que você assista para que possamos ter uma conversa franca? Mas você não será você; você será eu, o que espero de você, e quando não puder me ajudar - quando tão cruelmente me negar a realização da idealização - aí será meu saco de frustrações e pancadas. Aí terei raiva de você, aí não teremos uma conversa franca".
Mas escondo-me ao fundo da lanchonete, não quero atenção, não quero amor. Então, crio esse diálogo mental com você, você saltando-me à guisa de recordações como um alter ego.
"Porque eu não vou voltar".
"Bem, essa é sua última chance".
"Eu não vou voltar, tranque a porta, solte os cães e vá repousar, enfim. Ou saia pelos fundos e ache um novo amor, e transborde-se nele, frustre-se, mate-se, para que então possa renascer, cada vez mais completa; pare de se despedaçar, de se dilacerar. Viva esse suicídio que é amar, não pereça no ato. Pare de se sentar no sofá mirando o vão da porta. Eu não vou voltar, ainda não renasci".
"Mas devo fechar a porta sem ao menos termos tido uma conversa franca? Não consigo, por mais que você me rejeite, ainda quero te dar mais essa chance, ainda que não a queira, não tens o direito de recusá-la, é presente, é dádiva".

domingo, 26 de agosto de 2012

Correntes

O que me impede de sair? Que raízes são essas que me prendem tão firmemente ao chão?, não me lembro de cultivá-las. Lembro de querer ser livre. Indago-me, se ainda que inconscientemente, sucumbi ao peso da solidão. Escolhi a comunidade por não querer arriscar minha pele, escolhi uma segurança que apenas me limita. Não quero ser limitada, mas não sei como transpor as barreiras. Sim, as barreiras me são impostas tão somente pela mente, e por isso são tão intransponíveis. Minha mente é o que me torna diversa em meio ao confronto - será? Não me diferencio, assimilo-me aos demais na mediocridade para ter uma companhia ao final do dia. Agarro-me a um ideário tão somente aristocrático antiquado patriarcal - que seja -, sim, não consigo transpô-lo, fico acorrentada, é mais seguro.

Mas como me libertar? Quero muito sair, por favor deixem-me sair! Percebo, tarde demais, não devia ter esperado que a iniciativa viesse de fora para dentro. Tenho que deixar-me fluir, impelir-me para fora, sair sem pedir para que me deixem, que me tirem daqui, que me salvem. Entrego-me à minha cama quase como se fosse ela também uma extensão do meu corpo. Enrosco-me em meu cobertor, segura. Não tenho sonhos senão aqui, e ainda assim são sempre pesadelos. Não tenho porque sair, por mais que esteja presa, sufocada, angustiada. Como vencer essa agonia se é só nela que acredito?

Escrevo, e percebo o horror que é escrever - ainda por cima dizer em que acredito. No nada, nas coisas negativas. As coisas têm o peso que damos a elas, o problema não é externo, por mais que seja mais simples atribuir às causas exteriores aquela culpa inerente e inevitável, aquela culpa que é só nossa - Não, não, não, eu fiz tudo o que pude, não havia mais nada que pudesse ter feito, pelamor o que você gostaria que eu tivesse feito, queria que eu me destruísse? Não sabes o esforço imenso que faço para me manter inteira todos os dias, para levar esse edifício instável a passear, no passo-a-passo monótono e irrelevante do dia-a-dia. Não tenho sonhos, exceto em meu sono, e ainda assim são pesadelos. Estou sendo perseguida, querem eliminar-me e o pior de tudo é que meu algoz é minha própria mente.

Recorro à uma válvula de escape, cedo e trago a paz interior. Nunca senti algo tão sublime, nunca fui tão alheia ao que estava em volta, por mais que tudo aquilo me oprimisse, deprimisse, sufocasse, tudo o que fiz foi sorrir como se o sorriso impresso em minha cara fosse o natural,

E devia ser o natural, porque tudo aquilo era tão pequeno, tão tão minúsculo, mas eu aumentava as coisas, precisava de uma lente de aumento para analisar a fundo meus sentimentos, calcular minuciosamente o alcance das decisões, pesar as consequências. Tinha medo que as coisas se encolhessem de maneira tal a desaparecerem completamente, e assim agarrava-me com esse apego exacerbado. Mas era tudo costume, devia ser vencido. Ah, parecia tão fácil a elas simplesmente dizer isso. Eu, por minha vez, sabia da força secular do costume, sabia o quão intransponível ele podia ser.

Deixa pro seu "eu do futuro" resolver isso, seu "eu do presente" pode fazer o que quiser. E as dimensões do tempo funcionam assim de maneira tão inarticulada? Não, são elas que agem e influem sobre nós de maneira dinâmica passado-presente-futuro, nossas lembranças formam o que são, e nós agimos em função do que gostaríamos ser. Mas entendo agora o que você, tão simploria e perfeitamente quis me dizer. Não preciso rebater o jeito com o qual lida com sua vida tão ferrenhamente, de maneira tão acadêmica.

Só não pense tanto assim, cara.

sábado, 25 de agosto de 2012

Fiz algo de novo, mas novamente os motivos que me impeliram circundavam você
Fiz algo ligeiramente desesperado, beirando o extremo, mas ainda assim cômico.
Quis lidar contigo, contudo, admito que também quis desafiá-lo.
Sim, você me reprovaria se soubesse.
Desprezar-me-ia,
ao menos não seria indiferente.
A raiva que senti não foi nada cristã,
nem tampouco foram as coisas que fiz.
...nunca fiquei tão brava.
Havia de gritar, mas estava rouca, quase sem voz.
Não sei se a miséria que nos leva às músicas tristes,
ou as músicas tristes existem por causa da miséria.
Acho que nem sei o que é miséria, só tento me convencer que sim.
Não ouço mais música,
nem o clamor furioso,
sinto o leve balançar das ondas do mar,
o sol queima a pele, evapora o cheiro de protetor solar
fecho os olhos, miro o vazio.
Descobri o segredo do esquecimento.

domingo, 19 de agosto de 2012

Conto de desperdício

Estava estatelado no chão. Ouvia passos, barulho das botas amassando os cacos de vidro. Crec crec crec. Esmagado.
Via o enfrentamento silencioso de olhares que vinham de lados opostos da mesa, como se dissessem "Você não gosta de mim? Pois bem, eu não gosto de você também". Acendeu um cigarro e deu uma tragada ainda com uma bochecha colada ao azulejo encardido. Como era desnecessário e patético aquele desgosto mútuo, aquele embate para a demarcação de um território. Não faria menção de se levantar justamente por estar confortável demais em contato com o chão frio. Colocaram-no ali, e ali se encontrara. Toda aquela futilidade que se passava apenas a alguns palmos de distância, pessoas discutindo na mesa, confrontando-se com questões que balbuciavam bêbados, que nem ao menos ocupavam seus conscientes sóbrios, apenas fazia daquele fim de tarde ainda mais enfadonho, acrescentava um peso adicional à gravidade, que pressionava ainda mais o seu corpo rijo contra o chão.
Nunca esteve pronto para a retribuição. Amaria de modo incessante e descompensado enquanto não fosse correspondido. Deixaria ao abandono, em silêncio, num desprezo quase solene, todos aqueles que esboçassem um sinal de admiração. Ratos imundos. Era preciso ter uma autoestima beirando a zero, e ser muito iludido, para engolir toda sua corrupção, para fazer vistas grossas e justificar com um "é só o jeito dele".
Então o barulho das botas cessa por um instante, pois ela estanca ao vê-lo grudado ao chão. Não para por hesitação, apenas para poder aprofundar o franzido do cenho, aprofundar o seu desprezo. Ela sim era a única que respeitava, e porque ela havia partido, só depois dela ter partido. Afastou-se com graça e leveza, muito embora estivesse segurando o choro, apenas esperando o momento em que ninguém mais estivesse olhando para poder jogar-se pesadamente em sua cama com o intuito de nunca mais levantar. Mas ela não pestanejou. No segundo em que uma ideia invadira sua mente, também tomara conta de si, e avançou com certeza.
Soltou um meio sorriso em respeito e nostalgia, o compasso do baque dos saltos daquelas botas era familiar e agradável. Pediria desculpas se não achasse que fosse tarde demais, e se não tivesse medo de ter aquele salto familiar fincado em seu crânio. Não disseram nada. Só trocaram olhares que, certamente, duraram menos tempo que o aparente, e ela seguiu seu caminho passando por cima dele, depois deixando o apartamento ao fechar a porta silenciosamente.
Levantou-se num só impulso e foi sentar-se à mesa. Agora sorria um sorriso inteiro.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Hoje

Devia ter acordado ao menos 4 horas antes para poder fazer tudo o que me foi designado e também algumas coisas que me agradariam. A gente aprende a gostar do desagradável, talvez seja isso o que chamam de amadurecimento. Para ser capaz de acordar mais cedo, teria que ter conseguido dormir ao menos 2 horas antes. Teria que acreditar nos minhas finalidades. Mas nada era final, havia sempre o instante seguinte. Liguei a tevê no noticiário, mas não informavam nada que pudesse dar-me acalento. Sentia frio, segurava a caneca de chocolate com as duas mãos, sentindo o vapor subir por minha face e embaçar-me os óculos. Só queria saber de você. Queria projetar-me em outra vida, mas isso me era impossível: o sofá preto continuaria ali, o tapete empoeirado, os quadros abstratos em tons de marrom e azul que não deviam significar nada, fundamentalmente, mas pareciam espelhar minha angústia. Toda a gente era insossa, parecia que não tinham aprendido a sofrer. Não conseguia mais comunicar-me com eles, pois meu único canal recentemente era a miséria que cultivara, que se multiplicava, que fincava raízes. Toda a gente era insossa, e eu era uma coitada. Ela me liga porque quer compartilhar felicidade, eu só deixo o telefone vibrar incessantemente em minha mesa e ignoro. A felicidade tornara-se algo tão obsceno e esdrúxulo, não entendia como as pessoas conseguiam regozijar-se com algo tão efêmero e traiçoeiro.
Como arranjar uma arma? Munição, estou cheia delas, mas não tenho como atirar. Muitas coisas gostaria de dizer, mas não me é permitido, não passam pelo crivo do que é sensato. Fico engasgada, no meio do caminho. Não pareço impressionável, mas sou, justamente por esperar o nada. Quando ganho uma migalha, é como se fosse um quilate de diamante.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

zzzzzzZZZZZZZZzzzzzzzzz

o PESO da VIDA nocauteia-ME uma vez mais.
Não em razão de sua falta de essência, causa ou consequência. Não pela imbecilidade e falta de consciência dos outros, ou até mesmo a consciência de minha própria imbecilidade. Eu não tinha uma causa, e eu não buscava um sentido. Fora nocauteada e zanzava feito barata tonta, não havia lugar onde quisesse estar - ou ao qual pretendesse chegar. Não buscava ocupação. Todo conhecimento era estéril, eunuco, caduco, sem razão-de-ser. A solidão era demasiado certa para que eu me deixasse iludir novamente na promessa da saída de emergência. Havia um palhaço no metrô, mas ninguém ria. Havia calças pretas, cinzas e marrons - peles pretas, cinzas e marrons -, e não havia cores. Havia ruídos e sons e vozes, nunca música. Havia tantos fantasmas para me assombrar, mas eu não reagia. Eu estava mais uma vez chorando na 108 sul, apesar de não mais inconsolável e desenfreada; agora estática e catatônica, agora respirando ainda que com dificuldade. Não mais seria estrangulada, segurava minhas lágrimas de cabeça em pé e com os cabelos presos atrás das orelhas. Certa do fim, ainda que sentisse que o fim demorava a chegar, com os trilhos a poucos passos de mim, sabia não ter a coragem para me atirar. Os piores dias são os que começam bem, porque a carga das expectativas é muito pesada, porque a discrepância entre o real e o ideal é muito absurda, porque a promessa do encontro nunca se concretiza, porque a volta pra casa é sempre solitária, é sempre a rendição incondicional de quem não aguenta o frio o sufoco da multidão, de quem só quer descansar, fechar os olhos e acordar-se outro, fechar os olhos para não mais abrir, fechar os olhos rijos com tamanha violência para que as lágrimas parem de escorrer.
[porque quem compreende não ama, e quem ama quase nunca compreende o que é amar, justifica-se a suspensão de certo e errado em função do amor como justificou-se o holocausto, ou extermínios de outras dimensões]
"A descida ao metrô foi como a morte."
Mas não porque você soltou a minha mão, mas porque a segurou, em primeiro lugar. Por entrelaçar seus dedos nos meus, por ter de rasgar-me e invadir-me para poder se sentir confortável, por ter me imobilizado de maneira tal que não pude expulsá-lo, por ter-me impregnado; e aí sim, depois de conseguir sentir-se inteiro em função do meu próprio esvaziamento, aí sim soltou-me nessa descida desenfreada, em queda livre no abismo fétido gélido - escuro.
E eu encarei a escuridão, mas somente a escuridão encarou-me de volta, tatuando-me e transmutando-me em breu. O problema é sempre a solidão.
Quando toquei-te com suavidade e zelo e cuidado tamanhos que em ti quase não encostei - que de ti nada senti -, quando me olhaste com olhos opacos, aí foi que desfizeste-se bem em minha frente. Então vi que era inalcançável, feito de fumaça e espelhos, redutível ao pó; que todos seriam inalcançáveis pois eu que nunca haveria de desejar ser tocada, porque por mais que fosse absurdo o número de fantasmas, eles nunca me trespassavam, nunca sucederam em me consumir. Eu que me comia por dentro, que queimava não em combustão, mas em infindável azia. Agonizo a eterna mágoa, quer seja minha própria, quer seja de outrem. Alimento-me na fraqueza dos outros, e quando estão esbeltos e poderosos e distantes, eu que recolho-me inflexionada em minha introspecção.
[não me condenem por minha introspecção! só quis ficar ao teu lado em silêncio, mas porque me darias o silêncio e o conforto? queriam me bagunçar, bagunçavam-me ao acaso, insensíveis à minha própria fragilidade]
"Sou fraco, sou feio, sou fútil" e não posso nem ao menos consolar-me na singularidade de outro. Não roía as unhas, não mordia os lábios, permanecia impassível e impenetrável, e isso que me destruiria por completo, aos poucos.
[Tinha que desmistificar o amor, porque nunca havia amado, o que me parecia mais grave do que nunca ter sido amada - acho que por isso agarrei-me a ti por tanto tempo. Porque nunca havia sucumbido, não aos teus pés enquanto ainda eras sólido, mas deitei-me e afundei-me num leito composto por sua poeira. Nunca sucumbi, não aos pés de outrem. Preferi continuar sendo minha pior inimiga. Nunca amei - pois odiava a mim mesma mais do que tudo]
Não me importaria se alguém me afagasse os cabelos ou me envolvesse em braços, conquanto não me sentisse nauseada com o contato indesejado. Tudo diria respeito àquele embate dicotômico do lugar-comum , amor versus ódio, o caos interno sempre camuflado pelos olhos frios, pela apatia e pelo escárnio. Não queria uma causa, toda causa era inútil, toda vida desperdiçada. Queria sentir algo que não fosse a foice e o silêncio, ter outra certeza além da perspectiva de que seria a solidão que eventualmente me ceifaria a vida.

Tudo que eu tinha fora roubado. Assimilei-me aos que mais desprezava, nivelei-me por baixo. Livrei os que amava de meu fardo pesado, qui-lo só para mim. Era meu único companheiro, e nós nos entendíamos.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Um causo

Gosto de pensar na vida como sendo uma história. Um livro de contos, para os momentos marcantes, talvez um romance, caso após os 40 queira tecer uma linearidade entre os fatos vividos, caso queira idealizar minha infância, identificar os sintomas das doenças degenerativas. Tudo bem, ainda sou muito nova para um final feliz, que provavelmente só iria me entupir as veias de felicidade natural até que eu implodisse em tédio. Não penso que o "nós" esteja fadado à morrer, mesmo que eu e você pereçamos um pouco mais a cada dia que passa, golpeados por decepções, frustrados com as imperfeições. Penso em nós dois em um romance épico: reencontramo-nos na década de 60 em Londres, anos 70 em Nova York, em 80 militamos juntos no Rio, convalescemos no desgosto, somos finalizados à tiro de bala. Renascemos no início dos anos 90, década tranquila para se vir ao mundo, tv a cabo, consoles, telefone móvel, internet discada. Voltamos a Brasília, mas nunca mais nos falamos. A vida é mais feita de desencontros que de encontros.

Mas não estou sozinha. Tenho Bernard, Susan, Neville, Rhoda, Jinny e Louis, por mais que não goste muito dos últimos três. É o preço que se paga pelo convívio, nem todos os amigos nós escolhemos, por mais que digam o contrário, algumas pessoas são forçadas a nós. Temos mais a aprender na desavença que na harmonia, é o que dizem. Eles não conseguem me ouvir, mas consigo sentí-los. Sei que lá em 1930 eles me sentiram também, porque suas palavras percorreram o mapa da minha alma.

Algo me ocorre enquanto estou no meio do lago. Depois quando estou no banho. Parece que a água clareia os pensamentos. Da próxima vez, levarei um bloco de notas impermeável para registrar minhas epifanias, caso contrário esquecer-me-ei de tudo aquilo que à tanto custo, depois de tanto bater a cabeça na parede, vem-me de forma tão nítida. Quero cristalizar essa paz, colocá-la em uma seringa e injetar suas doses em mim mesma ao longo dos dias. Mas a paz é idealizada, não existe mais - bem, ou existe apenas para aqueles que ainda têm fé. As crianças dos anos 90 não vêm com fé embutida, defeito de fábrica proveniente da produção em série.

Mas.

-Mas. - ela falou simplesmente. Sabia que estava se opondo a algo, o peito enchia-se de indignação, buscava forças para com seus braços apartar aqueles braços que a envolviam, só não conseguia organizar suficientemente seus impulsos e suas palavras para realizar a ação necessária. - Mas. Mas. Mas.

Passava a mão insistentemente pelo rosto, coçando o nariz, esfregando os olhos. Não conseguia focalizar nada, queria apartar a tontura, conter o desespero que estava em seus prenúncios. Não sabia onde estava, nem o que queria - sabia que não queria estar ali.

Um balde de água fria literal escorreu pelos seus cabelos e percorreu em pequenos filetes seu corpo nu. Estava nua, reparou apenas naquele momento. Onde estavam suas roupas? Sentiu um frio súbito, não na pele, mas no desespero.

-Mas eu não quero isso. - protestou, com súbita violência, sacudindo os braços desarticuladamente, escorregando no azulejo e batendo de cara no chão. A dor ela conseguia sentir, conseguiu decifrar. Ouviu aquele estranho e horrendo barulho quando chocou-se contra o chão. Contudo, estava tão atordoada que a dor logo foi esquecida.

-Fica quietinha, só estamos te dando um banho. - disse uma voz que parecia vir do além, mas que provavelmente era pertencente à dona daquelas mãos que agora lhe ensaboavam.

Sentiu uma indignação que não conseguiu expressar no momento. Não queria um banho, não queria aquelas mãos estranhas tentando limpá-la, não importava o que fizessem, continuaria se sentindo imunda, horrorosa, errada. Seu cérebro obedecia a um balançar digno de barco em alto mar, os pensamentos o percorriam em ciclos - proa popa, estibordo bombordo, casco mastro. Aquelas pontadas infernais pareciam provenientes da âncora, uma ideia fixa determinada a deixá-la presa a um mesmo lugar.

-Não quero, não quero, não quero isso. - se estivesse consciente saberia o quão infantil estava soando. Os demais soltaram risadinhas. Não sabia quem eram, nem quantos eram, podia ser uma pessoa, a capacidade total para preencher aquele banheiro, ou então apenas seu próprio subconsciente rindo dela mesma.

De repente, foi atirada sobre uma cama macia. Alguém afagou-lhe os cabelos molhados, que umedeciam-lhe a face junto às lágrimas. Balbuciou agonias e desalento existencial, não sabia nem que estivera sentindo aquilo por tanto tempo. Tanto tempo, 20 anos, desde que nascera. Ou pelo menos desde que tomara consciência. Consciência? Sequer sabia o que era aquilo, não parecia que tinha direito de tomá-la para si.

-Não era isso que eu queria. Mas.

Aquilo que lhe fora dado.

sábado, 4 de agosto de 2012

agonia

Não tenho métrica
Não tenho rima
Sou só a insistência
simbiótica ao fracasso

Antagonizo pacificamente
Conflituosa e harmônica
Sou loucura em silêncio
Em dependência desarticulada

A poesia não é bela
Encantadoras palavras
Detestáveis pessoas

Asfixio-me no pó
Inspiro a imundície
Expiro floreios
Agonizo em eterna mágoa

fenecer

Fenece fremente
a intrincada trama
Desfaz-se e falece
frágil e futil
Ziguezagueia zonza

Desvanecendo-se no vão
Dilacera-me o seio
Atando as mãos
Ao desenredar-se o enleio

Rompe-se a tormenta,
e inicia-se outra
Sutil, ainda que de súbito

Renasce caduca,
definha nas madrugadas
O escuro é perene
mas persiste o coração.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Virginia Woolf

"-Porque - perguntou Neville - olhar o relógio tiquetaqueando sobre a lareira? Sim, o tempo passa. E envelhecemos. Mas sentar-me com você, sozinho com você em Londres, neste quarto iluminado pelo fogo, e você ali, e eu aqui, isso é tudo. O mundo esquadrinhado até os confins, todas as suas montanhas com as flores arrancadas e colhidas, não se sustém mais. Veja a luz do fogo correndo acima e abaixo na luz dourada da cortina. A fruta que ele rodeia enlanguesce pesadamente. A luz cai sobre a ponta da sua bota, dá ao seu rosto uma orla vermelha - penso que é o fogo, não seu rosto; penso que isso são livros contra a parede, e aquilo uma cortina, e aquilo talvez uma poltrona. Mas quando você chega, tudo muda. As xícaras e pires mudaram quando você entrou essa manhã. Não pode haver dúvida, pensei, afastando o jornal, de que nossas insignificantes vidas, disformes como são, assumem esplendor e significado apenas aos olhos do amor.

-Levantei-me. Terminara meu café da manhã. Depois havia o dia inteiro à nossa frente, e era um belo dia, temo, descomprometido, e passeamos pelo parque até o aterro, e pelo Strand até St. Paul, depois a uma loja onde comprei um guarda-chuva, sempre conversando, parando aqui e ali para olhar. Mas isto pode durar? - perguntei a mim mesmo junto de um leão em Trafalgar Square, esse leão visto uma vez para sempre. Assim revistei minha vida passada, cena após cena; existe um olmo e ali deita-se Percival. Eternamente, jurei. Depois caí na dúvida costumeira. Agarrei sua mão. Você me abandonou. A descida pelo metrô foi como a morte. Ficamos apartados, desligados por todos aqueles rostos e o vento oco que parecia bramir sobre rochedos ermos. Sentei-me em meu quarto, olhando sem ver. Pelas cinco sabia que você me era infiel. Peguei o telefone, e o bzzz, bzzz, bzzz de sua voz estúpida no seu quarto vazio desmontava meu coração, quando a porta se abriu e lá estava você. Aquele foi o mais perfeito dos nossos encontros. Mas esses encontros e essas separações acabam por nos destruir.

-Agora este quarto me parece o centro do mundo, algo retirado da noite eterna. Lá fora linhas se retorcem e interseccionam, mas em torno de nós, enroscando-se em nós. Aqui estamos centrados. Aqui podemos calar, ou falar sem erguermos a voz. Dizemos: você notou isto e aquilo? Ele disse aquilo, dando a entender... Ela hesitou, e creio que suspeitava. De qualquer modo, ouvi vozes, um soluço na escada, tarde da noite. Este é o fim de nosso relacionamento. Assim tecemos em volta de nós filamentos infinitamente finos, e construímos um sistema. Platão e Shakespeare estão incluídos, e também pessoas bastante obscuras, gente sem nenhuma importância[...]

-Ai de mim! Eu não poderia cavalgar na Índia com um capacete e voltar a um bangalô. Não posso cambalear por um convés, como você faz, feito menininhos seminus esguichando água um no outro com seringas de borrachas. Quero este fogo, esta cadeira. Quero alguém para sentar comigo depois da correria do dia, com toda a sua angústia, depois de tanto escutar, e esperar, e suspeitar. Depois da briga e da reconciliação, preciso de privacidade - para ficar sozinho com você, para pôr em ordem essa confusão. Pois em meus hábitos sou asseado como um gato. Precisamos opor-nos ao desperdício e deformidade do mundo, suas multidões circulando por aí, vomitadas e pisoteadas. É preciso passar espetáculos de maneira suave e exata entre as páginas do romance, amarrar maços de cartas asseadamente com seda verde, e varrer cinzas com a escova da lareira. Tudo deve ser feito para exprobrar o horror da deformidade. Leiamos autores de severidade e virtude romanas; procuremos a perfeição atravessando as areias. Sim, mas gosto de fazer passar a virtude e a severidade dos nobres romanos debaixo da luz cinzenta dos seus olhos, e relvas dançarinas e brisas estivais e o riso e os gritos de meninos que brincam - os cabineiros de navio, nus, no convés, esguichando uns nos outros a água de seringas de borracha. Por isso não sou um pesquisador desinteressado como Louis, que segue atrás da perfeição nas areias. Cores sempre mancham a página; nuvens passam sobre ela. E, penso, o poema é apenas a sua voz falando. Alcebíades, Ajax, Heitor e Percival também são você. Eles gostavam de cavalgar, arriscavam suas vidas temerariamente, e também não eram grandes leitores. Mas você não é Ajax nem Percival. Eles não franziam o nariz nem coçavam a testa com um gesto preciso. Você é você. É isso que me consola da falta de muitas coisas - sou feio, sou fraco - e da depravação do mundo, e da fuga da juventude, e da morte de Percival, e amargura e rancor, incontáveis invejas.
-Mas se algum dia você não vier depois do café da manhã, se algum dia avistar você em algum espelho, talvez procurando outro homem, se o telefone toca e toca em seu quarto vazio, então, depois de indizível agonia, então - pois não tem fim a loucura do coração humano - procurarei outro, encontrarei outro, você. Nesse meio tempo, vamos abolir com um sopro o tique-taque dos relógios. Chegue mais perto de mim."

As Ondas, pp. 173-177

Escrevo. Simplista. Minto.

Receio não conseguir libertar minha imaginação de seus grilhões porque têm peso excessivo meus sentimentos. Tenho ânsia de vomitá-los no papel assim que possível, não apenas para tentar compreendê-los, mas para fazer com que não tenham sido em vão. Minhas angústias são ignoradas, meu amor é sufocado, só um pouco de poesia e lirismo salvam-nos da total inutilidade, e do total esquecimento.
Tem dias que eu não consigo lembrar sequer do teor de qualquer um dos nossos diálogos. Sei de nossos interesses em comum, ainda consigo detectar sua risada no canto do lábio, suas sobrancelhas arqueadas, seu olhar de escárnio - seu olhar afetuoso, derretido e aquoso sobre o meu. Talvez nosso forte não fossem as conversas. Você se sentia bem, e eu me sentia bem, mas por motivos diferentes. Por pouco mais de 10 dias sentimos o mesmo, então descarrilhei-me de ti. Saí dos trilhos num lugar longínquo e achei que não tinha mais volta. Respirando fundo e, depois, em compassos exatos, peguei os remos com minhas próprias mãos, com os braços peguei as mãos, com o tronco os apoiei, e voltei ao porto apenas com minha força física, minha unicidade sendo tão somente corporal. Impeli-me para longe, mas não consegui distanciar-me efetivamente.
-Queria te dizer como acho Platão um tolo. - eu diria enfim. Você não entenderia. Eu ficaria acanhada de, em minha ignorância, expor tal opinião. Não desenvolveria o assunto.
Você pegaria seu violão, dedilhando-o atenciosamente pelos próximos minutos, tocando minhas músicas favoritas sem olhar-me, nem sequer de relance. Eu faria pouco de ti, abriria um livro e leria um mesmo parágrafo por pelo menos seis vezes, não absorvendo nada do conteúdo. Na verdade estava abismada, sua presença não só ressonava em cada uma das 4 paredes, seus comprimentos de onda sintonizavam até meu esôfago. Por muito mais que 10 dias você, e depois tão somente a memória de ti, me serviram como alimento. Até hoje não sei se foi você quem parou de me saciar o estômago, ou se fui eu quem fiz greve de fome. Fui infantil. Da greve de fome avancei para uma ânsia ainda mais insana, quis me atear em fogo. Inspirei náusea, virei indigestão.
Não creio que tenhamos sido tão únicos. Inúmeras vezes agarrei-me a você e não quis soltar; era quando me sentia mais banal e simples, mas foi quando descobri a completude. Era o fogo brando e acalentador, não esse calor dos infernos que me consome e ensandece. Todas as vezes que tento escrever sobre mim e só sai você, sinto-me banal e ridícula. Sinto-me incompleta, uma vez que não posso mais abraçá-lo e pedir para que fique. Não quero que volte. Tranquilamente, descanso em paz.
Escrevi 10 letras de música, e não foi uma para cada dia. Não tenho melodia para nenhuma delas e, ainda por cima, sou pura disritmia. Escrevi uma letra há algum tempo atrás, quando ainda não te conhecia, mas creio que foi para você. Sonhei um único sonho bom na vida, etéreo, rosado e leve; encontrei-o em você. Não tenho mais palavras. Reduzo frases. Tudo isso significa nada. E ao nada atiro tudo. Escrevo. Simplista. Minto.
Sim, acho Platão um tolo. Contudo, seria a maior das tolas se não reconhecesse que dele sou filha, descendente quase que direta, herdeira de um legado.

sábado, 28 de julho de 2012

Ela amou a outra desde o início, quando se deu o primeiro sorriso tímido, ajeitou o cabelo detrás da orelha deixando os piercings à mostra, desviou o olhar após encará-la brevemente. Amou-a e soube que era correspondida antes mesmo que a outra tomasse consciência que amava de volta. As coisas mínimas tem um jeito ininteligível de acontecer, o cérebro nunca consegue traduzir, percebemos alguns detalhes apenas em retrocesso - sendo que muitos deles são inventados por nós mesmos.
A garota amava-o apenas à distância, e ainda assim relutava em utilizar-se da palavra amor, era algo que possuía um peso inerente, talvez por causa da promessa da eternidade. Era muito nova e gostava de ficar sozinha. Passaria a amá-lo apenas depois que partisse. Marcou no calendário, escreveu-lhe cartas que nunca entregou, rasgou-as sem que pudesse relê-las. Descobrir seus próprios sentimentos depois que não mais os sentia era sempre coisa de absurda estranheza, como se tivesse de conhecer em si mesma outra pessoa.
Talvez eu devesse pausar mais vezes durante essa história para pesquisar palavras no dicionário. Contudo, estou cansada de recorrer às consultas para saber como me sinto, como devo me expressar, como devo proceder. A compreensão ideal é inatingível, mas tudo que sempre almejei foi compreender o que estava acontecendo ao meu redor. Não faço mais isso, pois não aconteço. Fui pega pelo marasmo, abraço o imobilismo. As duas sabiam que ambas se amavam, mas disso foram proibidas. Tantos desencontros, empecilhos, dificuldades auto-impostas... Foram, enfim, deixados de lado. Talvez o amor espere, seja paciente, duradouro, onipresente. A paixão, no entanto, clama com urgência, se retroalimenta assim como se consome na espera. A paixão não espera. O amor não existe, é impronunciável, enterra-se sob seu próprio peso.

Perdi uma já escassa capacidade para títulos

Estou em carne viva, meu coração bate, reparo, pois que sangro. Talvez não consiga poetizar como gostaria. Está tarde, não tenho rumo, estou sozinha. Dou voltas confusas pela cidade, não sei pra onde ir, não quero voltar para casa tão cedo, não obstante reluto em escolher uma direção - "a minha sensibilidade do novo é angustiante: tenho
calma só onde já tenho estado"*, encontro-me num estado intermediário da agorafobia e da claustrofobia. Mas ainda assim, anseio pelo novo. Entediei-me de mim mesma, encaro-me no espelho por alguns instantes com olhos opacos. Anseio e temo, nada espero, tão somente me escondo. É mais seguro, com minhas quatro paredes, meus dois cobertores, minhas meias de lã, meu chá de jasmim, meus livros empoeirados. Podia continuar com isso até o fim dos meus dias, repelindo a mudança, trancando-me dentro de mim. O único problema é que não gosto mais de mim. Eu que agora sou promessa que não foi cumprida, sou desperdício do intelecto, estou acima do peso desejado, sou alma intoxicada que transborda. Não tenho o que contar. Talvez esse seja meu maior problema, querer escrever sem ter exatamente o que escrever. Querer viver sem ter exatamente o que viver, sentir que não consigo continuar vivendo. Qual o propósito de uma vida longa? Plantar uma árvore, escrever um livro, ter um filho? Somos puro desmatamento, incêndio, bloqueio das ideias, superpopulação.
Mas tenho calma só onde tenho estado, só com quem já estive. Tenho pânico do novo, ao mesmo tempo em que também tenho tédio, sou tédio escorrendo pelas minhas narinas. Continuo divagando sem objetivo, incoerente e aborrecida. Amei-te, mas não me amavas. Procurei e não encontrei. Dirigi por horas a fio, atravessei madrugadas, não cheguei a lugar algum. Transcendi a fome, transcendi o sono, mas não supero a rejeição. Estou nua na frente de uma multidão - não é um sonho, é um estado de espírito -, continuo sozinha. O calor humano queima como o gelo polar.

domingo, 22 de julho de 2012

Precisava de alimento para sua imaginação, poesia para iluminar a alma, filosofia para exercitar o intelecto. Mas há dias estava fechado ensimesmado encucado desesperado consumindo-se nos cigarros que consumia. Não desiste de mim. Tinha nas mãos tudo aquilo que nunca desejara, desejava apenas aquilo que lhe fora negado incessantemente. Esquecia-se até como era sentir as diferentes variações de peso e leveza do toque, as alternâncias de intensidade, a ida da languidez à sofreguidão, à languidez novamente. Sentia apenas o cheiro da solidão e a espessura da fumaça, não lembrava mais do perfume, não distinguia cores, exceto o preto, o cinza e o branco. Nunca vou desistir de você, mas também nunca serei bom o bastante. Será possível que isto te baste? Não havia nem respondido aquela última mensagem, ignorava aquela despedida acanhada, irritava-se com aquele apelo para que ficasse bem. Fica bem, todos clamavam, dançavam em volta de seu cérebro, comprimindo-o, espetando-o, exalando uma dúvida de sabor amargo, mas odor inebriante. Enquanto tivesse a dúvida, as coisas não seriam tão finais, teria forças para levantar-se da cama, teria um arco-íris, em vez do simples e enfadonho pretobrancocinza, e além disso teria um final feliz. Por isso não responderia aquela mensagem, não daria adeus. Abraçaria a dúvida e a ambiguidade contra o seio, as pessoas nunca sabem direito o que fazem, dizem e querem, não é mesmo? A dúvida continuaria pairando, impedindo a sanidade de entrar em cena, ignorando todas as evidências óbvias fornecidas pela razão.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Suspenso

Tinha que conseguir escrever algo que não fosse sobre ele, sobre como ela estava depois dele, como ela não conseguia mais achá-lo em outro lugar, em outrem. Talvez não fizesse sentido, no fim das contas. Nem lembrava mais se aquele olhar perfurador era azulado ou esverdeado, não lembrava da cicatriz na sua mão, tampouco da inclinação da nuca, não sabia nem ao menos com qual letra começava o seu nome.

Listen to your heart, listen to your heart.

A música explodia em seus tímpanos. Ficaria surda antes de ser capaz de escutar a voz do coração. Era um coração surdo, mudo, cego e insensível o que sempre quisera. Continuava seu caminho com passos irregulares, saltava um ou outro ladrilho por impulso, não havia nenhuma ordem lógica. Sentou-se de súbito no chão de concreto que absorvia o calor do sol. Suas pernas queimavam. Tentou a posição da flor de lótus, mesmo não sabendo ao certo como fazê-la. Suas pernas queimavam, isto era certo, mas queimavam mais intensamente seus ouvidos, enquanto aquela batida que sempre tentava imitar descompassadamente com os pés martelava o cérebro.

There's an empty space inside my heart.

Fechou os olhos e prosseguiu naquela meditação de fachada. O sol queimava o couro cabeludo, o suor começava a escorrer, e sentir energia - qualquer tipo que fosse - era a última coisa que fazia, sentia mesmo era irritação e calor. Um dia ainda conseguiria elevar-se, mas talvez só no momento de sua morte. Mas tudo era música. Não sabia exatamente como criá-la, mas sabia muito bem como tocá-la dentro de si.

One day I am gonna grow wings, a chemical reaction, hysterical and useless.

Agora tentava deitar-se no chão frio de cerâmica de bruços e elevar-se uns poucos centímetros, mas a gravidade a puxava para baixo, seus músculos não aguentavam, e sentia com uma das bochechas um gélido prazer, intimamente masoquista. E era tudo que precisava, ser deixada ali no chão, sem interlúdio para a dor que era a única coisa real - nua suspensa aberta, sozinha -, só implorava por um choro que não tivesse de abafar e um sorriso que tivesse de repuxar e porra, quem liga pra qual sapato está na moda agora?, não é como se isso não fosse mudar daqui a três meses, vou continuar usando meu tênis surrado, vou andar descalça pelo concreto em chamas.

Nada fazia sentido, e por isso era tudo sobre ela. Sobre tudo que flutuava ao seu redor, tudo que tentara tocar e se desfizera na simples menção do toque, alguns objetos simplesmente me atingiam em cheio na cabeça, algumas facas eram atiradas, você tentava a todo o custo desviar. Eu era ela, mas ela não era mais eu, e nossos movimentos não se combinavam dos dois lados do espelho. Ela tinha essa ânsia, sentia todas as coisas entrando em ebulição, eu fechava-me em posição fetal no escuro.

De repente, não havia mais música, pois que não havia mais o que sentir. Agora esperneava na cama. Lembrava-se de um verso e cantarolava histérica, fora do ritmo, com a entonação incorreta:

I just wanna feel everything.

A música tinha fugido, os tímpanos estavam estourados e o sangue lhe escorria pelo canto da boca. Tudo estava suspenso, mas em um átimo estava em queda livre. Não conseguiria se elevar, a gravidade continuava ali puxando tudo para baixo.

I never cared before

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Os outros

Não era mais a mesma coisa e ele não sabia o porquê. Mas era fato que as coisas tinham mudado, já que aqueles olhos não tinham mais o mesmo poder sobre ele, não mais encontravam-se no teto de seu quarto todas as noites. Aquela garota na soleira de sua porta era capaz de pesar em seu coração como jamais pesara, mas sua desolação, seu desconsolo, o cabelo bagunçado, o suéter largo que denunciava como estava agora ao abandono, apenas lhe causavam pena.

-Tadinha, tadinha - ele sussurrava, com a cabeça dela contra o seu peito, com suas mãos passando pelos seus cabelos macios.

Mal podia acreditar que estivera tão perdidamente apaixonado por ela pelos últimos meses. Agora só sentia aquele peso, aquele peso que não queria carregar. Não conseguia sustentar aquele olhar desesperado, aquele apelo silencioso que ela sempre lançava sobre suas costas. Todo aquele desespero não era por ele. As migalhas daquela que amara tão desesperadamente estavam agora em suas mãos, e ele temia não conseguir colocá-las em seu devido lugar, temia causar mais dano do que reparo. Queria tê-la para si - ou melhor, quis tê-la para si durante muito tempo, mas ela sempre segurava sua mão frouxamente, sempre apartara seus abraços. Sempre quis outro. Ainda queria, e se pudesse estaria com ele. Ele sabia de tudo isso. Contudo, por tanto tempo não quis outras, não conseguia encontrar em mais ninguém aquele sorriso nos olhos, aquela constrangedora concepção de abandono, aquela estranheza que de alguma maneira lhe arrancara tantos suspiros. Queria apenas ter seus dedos entrelaçados com os dela.
Ela esperava alguma ação por parte dele. Estava ali, com a cabeça em seu ombro, de mãos dadas, olhos entreabertos. O desespero martelava, a náusea nunca seria suplantada. Ele se desvencilha dela, sai de fininho. Vai procurar conforto no aposento seguinte, os olhos dela não estão mais no teto de seu quarto. Mas ele conseguia farejar o desespero dela, enquanto as mãos dela ainda se agarravam à manga de sua camisa.

O que fazer? Não era mais o mesmo. Ainda segurava a mão dela com firmeza, rezando para que seus batimentos voltassem ao normal, confortava-a para que não se sentisse mais claustrofóbica, acariciava-a porquanto sabia que iria acalmá-la, iria refrear as lágrimas dela. Lágrimas que desaguavam por conta de outro. Havia de oferecê-la o conforto que pudesse, mas seu conforto encontraria em outra.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

BAR, Meu (2012)

"Quem faz de si um animal selvagem esquece a dor de ser humano"

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Cuidado

Desconverso e desvio o olhar. Sei que você quer cuidar de mim, eu é que não quero mais precisar (e querer) ser cuidada.

-Passa aqui amanhã - você insiste.

Eu continuo relutante. Não é que não queira seu carinho, é só que nunca sei medir bem essas coisas, não quero ter de me acostumar a ficar sem você, pois sei que vai decidir partir. A vida é feita de movimento, e como poderia ser de outro jeito? Tento manter as coisas estáticas, mas sou jogada de um lado para o outro com tanta violência que por vezes só fecho os olhos e peço desesperadamente para que a turbulência passe. Mas peço pra quem, se não acredito que tenha alguém de ouvidos prontos a me escutar? A maior parte dos meus apelos vai para minha força de vontade, adormecida, acomodada, quieta. Nunca me sinto pronta para adentrar um novo turbilhão, geralmente sou impelida a isso. Uma vez que passa a tempestade, fico jogada em meio aos escombros, recolhendo estilhaços e pedaços daquilo que deixara de ser, me apegando às migalhas. Resisto às mudanças.

Em termos de afetividade, sou como animal selvagem. Posso rosnar, latir e até morder de início. Não é por mal. Estou acostumada a ficar na defensiva. Mas, uma vez que me domesticam, não tenho mais vontade - e nem coragem - de voltar à dormir na estrada fria e escura. Sou como cão vira-latas que, uma vez bem afagado e alimentado, escolhe seus mestres e tem-lhes em alta conta permanentemente. Escolho também ficar às voltas com meus queridos amigos, donos do meu coração.

E se eu quisesse passar na sua casa todas as manhãs?

Sou como animal acuado, já fui domado e domesticado, porém fui demasiado maltratado por aqueles que me prometeram proteção. Devo então ser autossustentável, voltar às ruas e contar apenas comigo mesma para me defender. "Só o acaso estende os braços à quem procura abrigo e proteção", já dizia um estimado poeta.

O problema é que não sei medir essas coisas. Amor não se quantifica, é óbvio. Tampouco deve-se cristalizar. Mas como vencer a insegurança que traz essa certeza da mudança? As pessoas a gente perde, mesmo porque não há como tê-las por definitivo. Contudo, cada um que parte parece levar consigo um pedaço de mim. Sinto-me cada dia mais esvaziada. Ameixa seca sem rumo, não tenho pra onde ir, não tenho em quem confiar.

Seus braços me envolvem e me protegem do frio nesse momento. Observo a paisagem, fotografando-a com os olhos, e no instante seguinte as nuvens já flutuaram para longe do sol, o amarelo tornou-se laranja, o barco que encontrava-se à direita da minha visão, está à esquerda. O pescador recolhe a rede sem peixes, o falso suicida - apenas mais um desesperado - atira-se ao lago, mas não consegue afogar-se. As cores e os movimentos se alternam, se transmutam, é certo. Mas no mundo humano tudo permanece em imobilismo. O coração humano, que tanto oscila e lateja, insiste em uma constante: a dor.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Ela não está mais lá

Não olhe pra trás. Não importa se ainda ela estará na plataforma da estação ou se já partiu. Você que decidiu isso, você fez o que quis. Entrou no trem e desejou partir para qualquer lugar indefinido, desde que longínquo, desde que ela não estivesse mais lá. Não olhe pra trás, o problema não é se ela ainda está na plataforma, e sim que você quer que ela ainda esteja. Você espera que ela desça todas as escadas, esteja atrás de todas as portas. E se ela estivesse? Nada mudaria. Se você quis partir, você teve um motivo. Você não suportou, ela asfixiava seu cérebro, envenenava suas veias, você acordou daquela comatose, aquela dormência latente. Voltar atrás não é uma opção, então é bom que você não mais a projete naquela plataforma, por mais que você queira mais do que a vida, com um desejo mais desesperado do que fora sua decisão de partir, que ela não saia do lugar. Ela provavelmente pegou outro trem. Vocês seguirão rumos distintos agora. A distância é desoladora, mas lembre-se sempre do alívio que lhe trouxe, alívio que ela não pudera - porra, não quisera - fornecer. Você tem de amputá-la, feche os olhos e arranque-a fora, e a dor passou, foi só um susto. Não espere que ela venha lamber suas feridas. Por mais que estejam em carne viva, perceba, isso é porque você ainda está vivo.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Ossos

Não sei explicar porque parei de comer. Há algo de nauseante nessa necessidade de alimento, na busca constante pela satisfação de um estômago inquieto, que faz com que eu resista à mastigação, à deglutição , à digestão. Sinto-me mais real ao perceber que agora consigo sentir que meus ossos começam a aparecer, rasgando-me a pele, enquanto minha barriga não cessa em seu apelo dolorido e constante, que enfim suplanta o aperto em meu coração. Comer seria ceder, desistir dessa nova pretensão de autoconhecimento. Sei que sou apenas esqueleto, carcaça consumida pelos abutres, uma estrutura vazia, conveniente, que serve de mero suporte de tempos em tempos, mas que enferruja cada vez mais. Em breve atirar-me-ei ao ferro velho. A ferrugem corrói-me os ossos, o cansaço circunda meus olhos. Mas sinto-me real. Minha birra infantil diz respeito a mim apenas, não envolve mais ninguém. Sorrio debilmente, finalmente algo que só diz respeito a mim. Porque eu tenho que pensar em mim mesma, e para consegui-lo, preciso primeiramente ser capaz de me sentir. Não sei mais aonde estou, me perdi. Saio à rua como uma criatura do submundo, a luz cega-me os olhos, o mínimo movimento me deixa sobressaltada, os sons artificiais e eletrônicos me agridem. Tudo me parece tão distante, tão irreal. Mas quando sinto meus ossos, sei que ao menos eu sou real. Olho-me no espelho após uma noite mal dormida e sorrio com satisfação. Meus olhos fundos, as pálpebras recaídas, as olheiras escuras, tudo isso reflete como sou no interior. Não uso mais uma máscara, e não quero ter que usar, não quero ter que respirar de maneira limitada, abafar minha angústia, esconder minhas lágrimas. Não quero mais viver em sociedade. Agora sou uma criatura do submundo.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Eco

É como um grito que se perde no vácuo. Teu nome na lista do chat me chama, como um apelo velado, um sinal contido. Sei que não quero mais confusão, não queres mais me confundir, mas agora meus próprios sentimentos e memórias me confundem. Teus sinais vitais estão fraquejando em mim, mas ainda assim oscilam - sístole, diástole, forte, fraco. Quisera eu não foste tão fraco, que teus sentimentos por mim fossem mais fortes. Se não te bastei, ao menos sei que me basto. É bom que haja só uma voz em minha mente, ainda que seja amarga, ainda que grite ainda que me questione. Mas minto. Tua voz ainda ecoa. "Há outra saída?". Meu sorriso retorcido para baixo, a careta que segurava meu choro, diz que não. Não fui intransponível de propósito, queria que me transpusesses. Permaneço assim, in limbo. Sou um pé no futuro, outro no passado, ainda na indefinição do presente. Devo me esforçar para voltar, mesmo quando tudo me impelia para frente? Teu corpo jaz inerte, estás pálido e não reages. Contudo, tua voz ainda ecoa.

E se você soubesse?

E se você soubesse que eu demoro até ir dormir porque não gosto de acordar no dia seguinte? Se eu te contasse todos os sonhos doidos que eu tenho e que me modificam de alguma forma todos os dias, mas que nunca me tiram do lugar, uma vez que sempre acordo na mesmice? E se você tivesse conhecido minha risada de porco? E se você tivesse me deixado cuidar de você despreocupadamente, sem que essa pressão esquisita implodisse o que tínhamos? E, de súbito, aquele turbilhão de sentimentos vira nada. Você não me bagunça mais. Já fechei a porta, aqui você não entra.

domingo, 24 de junho de 2012

Acabou?

Acabou e não foi nada. Acabou do jeito que queríamos que tivesse durado, na tarde leve de domingo, com os jovens (bem, pelo menos os mais jovens que nós) jogando futebol despreocupadamente na nossa frente, enquanto nós dois compartilhávamos reminiscências difusas. Acabou porque eu sentia que você estava desaparecendo, com você me perguntando se eu queria dar um ponto final. Eu não queria dar um ponto final, caramba, mas o que eu não aguentava mais eram tantas interrogações. Não foi porque eu te apaguei que você começou a desaparecer, você começou a desaparecer porque você me apagou e eu não entendi o porquê. Talvez não tivesse um porquê, e mesmo que tenha, acho que não importa já que acabou. Acabou e é definitivo, senão não teria acabado. Tudo encerra-se naquele momento final, você apertando a minha cintura com firmeza, eu com a cara enterrada na curva que o seu pescoço faz com o ombro, tudo era estática, latejava de uma maneira que eu não entendia bem, e parecia que nós iriamos ignorar tudo aquilo que fora decidido anteriormente, porque nenhum de nós queria soltar. Porque você me deixou ir? Eu sei que eu só te soltei porque se ficasse mais um segundo naquele abraço, eu que iria desaparecer em você, eu iria derreter e me fundir, eu não ia conseguir largar. E você só iria embora com os ombros curvados, pedindo desculpas por sei lá qual razão, por algo que eu não tinha que desculpar, por coisas que eu só devia lamentar. Contudo, optei por não me lamentar, decidi reeditar o calendário e te tirar das minhas preocupações. Não sei porque você não soltou, não sei porque você não quis insitir. Talvez tenha sido bom que não tenha me dado um motivo pra ficar, porque você sabe, não é? Você sabe que eu ficaria. Acho que esse foi o problema, será? Ou o problema é que você não sabia nada de mim, até mesmo que não quis saber suficientemente. Suas feridas ainda estavam abertas, eu não sabia. Mas o que eu poderia ter feito a respeito disso? Devia tê-las costurado, esperá-lo cicatrizar para que você pudesse ser meu? Será que fui fraca, frívola, volúvel por não tê-lo querido de qualquer forma? Só porque não quis o que você tinha a oferecer, não significa que não queria você. Acho que você sabe disso. Porque o que você tinha a oferecer era tão pouco, era tão frágil e superficial, eu não vi como manter as coisas. Tudo encerra-se (será?) quando te vejo de costas, a postura ereta, o pescoço absurdamente branco, enfim tenho certeza de que você não está mais olhando e decreto minha rendição incondicional, deixando os estranhos no metrô verem a minha dor, não propositalmente, mas porque não consegui mais me segurar. Acordei nesse dia sabendo que o fim tinha começo, que por fim tomou sua forma, e invadiu minha boca com aquele gosto amargo. Mas ainda conseguia sentir o seu perfume em minhas roupas, sua mão afagando meus cabelos, conseguia sentir o aperto daquele abraço, mas sentia-o agora em meu coração. Não quero você distante, e esse é o problema. Mas você está desaparecendo, tornando-se agora uma ideia, um gosto amargo, um peso no meu coração.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Fora de ordem

Desordem, bagunça e marasmo. Como prosseguir em meio a esse imobilismo? Esse strip tease da alma não tem audiência, não devo me humilhar. Devo eu mesma me ignorar, só penso asneiras.

"What is love?"

Poderia muito bem deletar o seu número, mas que bem faria se já o tenho gravado em minha memória? Poderia muito bem tentar te deletar do meu convívio social (muito embora seja um tanto quanto difícil, uma vez que moramos nessa cidade ovo de codorna), mas que diferença faria se no seio do meu lar, em meio ao abandono alaranjado e doentio de meus aposentos, ainda consigo ver seus olhos quando enegrecem-se os meus? Poderias ser iguais aos outros, os que vieram antes de ti, ou como são os outros com os quais me distrai enquanto não estavas (oh, era desespero, puro desespero, não te enciúmes), contudo és distinto. Eles que são todos iguais, diferentes em estatura, ofício, endereço - mas todos iguais em essência -, apenas seriam zumbidos sem significado em meus ouvidos, isso se sequer ressonassem. Apenas palavras vazias, muito embora alguns tenham acreditado firmemente no amor que tentavam declamar. Eu não acreditava, eu os rejeitei. Não que tenhas declamado algum amor por mim - e eu também não declarei amor por ti. Mas em ti sempre busquei apenas isso, busquei um cuidado característico tão somente do amor. Iríamos chegar lá, eu sentia, eu sabia, mas mais do que tudo eu esperava, projetando no horizonte um pôr-do-sol de glorioso laranja-avermelhado. Juntava minhas mãos em otimismo inesperado, não característico, quase um alienígena em terreno dos meus sentimentos, e pedia aos céus. Qualquer força sobrenatural que pudesse me ajudar seria aceita, embora não acreditasse em nenhuma delas. Esperei como nunca antes havia esperado. Como isso seria congruente se tinha consciência que não devia esperar coisa alguma? Não fora esse o acordo verbal selado pelos nossos lábios em diversas ocasiões? Só porque fazia sentido em minha cabeça, não quer dizer que atenderia aos anseios de meu coração. E de repente me vejo assim, brega, barata e clichê, falando dos anseios de meu coração. Mas porque me sinto assim: deito-me em minha cama, cerro os olhos com força e busco fluidez, busco leveza e placidez, e nada escuto do silêncio da noite além das palpitações advindas de meu seio. E desde quando o coração pode palpitar sobre qualquer coisa? Não hei de permitir, está proibido! Encontra-se trancafiado numa cela torácica por uma razão, exato, pela razão da qual sou possuidora e da qual me utilizo sempre. Sou iluminada por ela, entidade de suprema grandeza, faculdade mental que faz com que eu seja eu e não outra, que faz com que seja sapiente, homo sapiens, garota sensata: nunca se deixou levar e sempre teve a cabeça feita pelas suas próprias necessidades, nunca entregou-se a um qualquer, nunca abaixou a cabeça, nunca ajoelhou-se aos pés de um macho, nunca deixou suas vontades serem suprimidas pelas de outrem. Nunca foi amada. Ao menos não como mulher, como amante, como confidente dentre lençóis, não olhando nos olhos de alguém que me pertencia, com a mutualidade inerente (ou suposta?) do amor, alguém a quem pertencia também. Era amiga, era filha, irmã, aluna, e isso sempre me havia bastado. Porque desejaria ser mulher? Porque almejaria o estigma, o peso, as obscenidades, a objetificação, as frases sujas murmuradas em meu ouvido? Havia de ser por uma carência que não me era natural, não, não, eu não era assim, eu não seria assim. Precisaria apenas de mim mesma, dependeria apenas de mim mesma, apoiar-me-ia sempre sobre minhas próprias pernas - não me submeteria ao uso de muletas. De que servia o amor, afinal de contas? Para qual fim, se ao menos fosse um meio? Não sabia nem ao menos o que significava isso. Permaneceria sem saber. Viveria o resto de meus dias bastando a mim mesma, desprezando o amor romântico, afastando qualquer possibilidade de envolvimento. Nunca fui amada, nunca hei de ser e, o mais importante de toda essa resolução enrolada e dramática: não precisaria ser. E daí se conseguira vislumbrar o futuro nos olhos de outrem? Era apenas uma miragem, uma ilusão carente, um devaneio que tomara conta de mim num momento de fraqueza. Sempre soube que precisaria trilhar meu próprio caminho, abrir frestas em meio aos galhos cortantes - sem sutileza, empunharia em mãos um facão e havia de ser determinada, prosseguindo só, mesmo que me fosse oferecida alguma ajuda, mesmo que os cortes fossem muito profundos. Não sangrava, recusava-me a acreditar. Não havia sangue correndo em minhas veias, porque não havia coração para bombeá-lo. Toda e qualquer tentativa que ele fizesse de me desviar de meu caminho, tentando distrair-me com aquela alarmante vermelhidão, tentando chamar minha atenção para os cortes, para a dor - pura e simplesmente a dor - que era a solidão, seria ignorada. Ah, como desejei não sangrar! Mas o sangue acabou por sair-se de meus olhos, e não em vermelhidão obscena, mas sim em puras e límpidas lágrimas. Lágrimas bombeadas pelo coração enlouquecido, que sacudia as grades de sua cela incontrolado, secava-me a garganta, golpeava-me o estômago. Lágrimas que tentei em vão conter, envergonhada, sentindo-me ridícula por desaguá-las. Querendo desaparecer ao mesmo tempo em que esperava - idiota, idiota, idiota, ousando esperar alguma coisa!, e ainda mais esperando algo tão obsceno - que você viesse enxugá-las, que você viesse fazê-las cessar de algum modo. Que você viesse me tomar em seus braços, me fazer mulher, afagar-me os cabelos e segurar minhas mãos nas suas, me fazer namorada, sussurrar em meus ouvidos, me fazer cúmplice, beijar-me os grandes lábios, me fazer amante, beijar-me suavemente a boca, me fazer feliz. Amar-me simplesmente. Amar a mim, menina tola que sufocou e que continuava sufocando o que haveria em si de mais genuíno, menina sozinha, menina triste, menina ao abandono de pai e de mãe, menina que nunca foi amada.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Pôr-do-sol

Escrevo porque o pôr-do-sol hoje era apenas o momento em que o sol se pôs, tingindo os céus com seus raios alaranjados e quentes suavemente, com uma leveza que certeiramente atravessaria continentes, aclimatando meu peito, que se encontrava sereno. Admirei-o simplesmente por sua beleza, o ser-em-si, e não pelo que aquele evento significava em mim. Agradou aos olhos com sua simplicidade e com a dignidade casual de ocorrência do dia-a-dia. Era independente de mim, mas eu para sempre serei seu dependente, pois que admiro seu calor e de sua alegria suave. Mais que isso, necessito dele. Por vezes, porém, esqueço-me de sua ocorrência, acabo por perdê-lo quando fechada em meu quarto escuro, com as cortinas puxadas. Contudo, isso faz apenas com que meu estupor seja ainda mais intenso, quando me vem de surpresa, ainda que sempre pontual, é também sempre espontâneo, espontaneamente alegre e alaranjado, amarelado, avermelhado, arroxeado e, por fim, azulado. Passa por mudanças de forma matizada, indiferente ao seu admirador. E eu acabo por esquecê-lo, embora também sinta sua falta.