segunda-feira, 30 de julho de 2012

Virginia Woolf

"-Porque - perguntou Neville - olhar o relógio tiquetaqueando sobre a lareira? Sim, o tempo passa. E envelhecemos. Mas sentar-me com você, sozinho com você em Londres, neste quarto iluminado pelo fogo, e você ali, e eu aqui, isso é tudo. O mundo esquadrinhado até os confins, todas as suas montanhas com as flores arrancadas e colhidas, não se sustém mais. Veja a luz do fogo correndo acima e abaixo na luz dourada da cortina. A fruta que ele rodeia enlanguesce pesadamente. A luz cai sobre a ponta da sua bota, dá ao seu rosto uma orla vermelha - penso que é o fogo, não seu rosto; penso que isso são livros contra a parede, e aquilo uma cortina, e aquilo talvez uma poltrona. Mas quando você chega, tudo muda. As xícaras e pires mudaram quando você entrou essa manhã. Não pode haver dúvida, pensei, afastando o jornal, de que nossas insignificantes vidas, disformes como são, assumem esplendor e significado apenas aos olhos do amor.

-Levantei-me. Terminara meu café da manhã. Depois havia o dia inteiro à nossa frente, e era um belo dia, temo, descomprometido, e passeamos pelo parque até o aterro, e pelo Strand até St. Paul, depois a uma loja onde comprei um guarda-chuva, sempre conversando, parando aqui e ali para olhar. Mas isto pode durar? - perguntei a mim mesmo junto de um leão em Trafalgar Square, esse leão visto uma vez para sempre. Assim revistei minha vida passada, cena após cena; existe um olmo e ali deita-se Percival. Eternamente, jurei. Depois caí na dúvida costumeira. Agarrei sua mão. Você me abandonou. A descida pelo metrô foi como a morte. Ficamos apartados, desligados por todos aqueles rostos e o vento oco que parecia bramir sobre rochedos ermos. Sentei-me em meu quarto, olhando sem ver. Pelas cinco sabia que você me era infiel. Peguei o telefone, e o bzzz, bzzz, bzzz de sua voz estúpida no seu quarto vazio desmontava meu coração, quando a porta se abriu e lá estava você. Aquele foi o mais perfeito dos nossos encontros. Mas esses encontros e essas separações acabam por nos destruir.

-Agora este quarto me parece o centro do mundo, algo retirado da noite eterna. Lá fora linhas se retorcem e interseccionam, mas em torno de nós, enroscando-se em nós. Aqui estamos centrados. Aqui podemos calar, ou falar sem erguermos a voz. Dizemos: você notou isto e aquilo? Ele disse aquilo, dando a entender... Ela hesitou, e creio que suspeitava. De qualquer modo, ouvi vozes, um soluço na escada, tarde da noite. Este é o fim de nosso relacionamento. Assim tecemos em volta de nós filamentos infinitamente finos, e construímos um sistema. Platão e Shakespeare estão incluídos, e também pessoas bastante obscuras, gente sem nenhuma importância[...]

-Ai de mim! Eu não poderia cavalgar na Índia com um capacete e voltar a um bangalô. Não posso cambalear por um convés, como você faz, feito menininhos seminus esguichando água um no outro com seringas de borrachas. Quero este fogo, esta cadeira. Quero alguém para sentar comigo depois da correria do dia, com toda a sua angústia, depois de tanto escutar, e esperar, e suspeitar. Depois da briga e da reconciliação, preciso de privacidade - para ficar sozinho com você, para pôr em ordem essa confusão. Pois em meus hábitos sou asseado como um gato. Precisamos opor-nos ao desperdício e deformidade do mundo, suas multidões circulando por aí, vomitadas e pisoteadas. É preciso passar espetáculos de maneira suave e exata entre as páginas do romance, amarrar maços de cartas asseadamente com seda verde, e varrer cinzas com a escova da lareira. Tudo deve ser feito para exprobrar o horror da deformidade. Leiamos autores de severidade e virtude romanas; procuremos a perfeição atravessando as areias. Sim, mas gosto de fazer passar a virtude e a severidade dos nobres romanos debaixo da luz cinzenta dos seus olhos, e relvas dançarinas e brisas estivais e o riso e os gritos de meninos que brincam - os cabineiros de navio, nus, no convés, esguichando uns nos outros a água de seringas de borracha. Por isso não sou um pesquisador desinteressado como Louis, que segue atrás da perfeição nas areias. Cores sempre mancham a página; nuvens passam sobre ela. E, penso, o poema é apenas a sua voz falando. Alcebíades, Ajax, Heitor e Percival também são você. Eles gostavam de cavalgar, arriscavam suas vidas temerariamente, e também não eram grandes leitores. Mas você não é Ajax nem Percival. Eles não franziam o nariz nem coçavam a testa com um gesto preciso. Você é você. É isso que me consola da falta de muitas coisas - sou feio, sou fraco - e da depravação do mundo, e da fuga da juventude, e da morte de Percival, e amargura e rancor, incontáveis invejas.
-Mas se algum dia você não vier depois do café da manhã, se algum dia avistar você em algum espelho, talvez procurando outro homem, se o telefone toca e toca em seu quarto vazio, então, depois de indizível agonia, então - pois não tem fim a loucura do coração humano - procurarei outro, encontrarei outro, você. Nesse meio tempo, vamos abolir com um sopro o tique-taque dos relógios. Chegue mais perto de mim."

As Ondas, pp. 173-177

Escrevo. Simplista. Minto.

Receio não conseguir libertar minha imaginação de seus grilhões porque têm peso excessivo meus sentimentos. Tenho ânsia de vomitá-los no papel assim que possível, não apenas para tentar compreendê-los, mas para fazer com que não tenham sido em vão. Minhas angústias são ignoradas, meu amor é sufocado, só um pouco de poesia e lirismo salvam-nos da total inutilidade, e do total esquecimento.
Tem dias que eu não consigo lembrar sequer do teor de qualquer um dos nossos diálogos. Sei de nossos interesses em comum, ainda consigo detectar sua risada no canto do lábio, suas sobrancelhas arqueadas, seu olhar de escárnio - seu olhar afetuoso, derretido e aquoso sobre o meu. Talvez nosso forte não fossem as conversas. Você se sentia bem, e eu me sentia bem, mas por motivos diferentes. Por pouco mais de 10 dias sentimos o mesmo, então descarrilhei-me de ti. Saí dos trilhos num lugar longínquo e achei que não tinha mais volta. Respirando fundo e, depois, em compassos exatos, peguei os remos com minhas próprias mãos, com os braços peguei as mãos, com o tronco os apoiei, e voltei ao porto apenas com minha força física, minha unicidade sendo tão somente corporal. Impeli-me para longe, mas não consegui distanciar-me efetivamente.
-Queria te dizer como acho Platão um tolo. - eu diria enfim. Você não entenderia. Eu ficaria acanhada de, em minha ignorância, expor tal opinião. Não desenvolveria o assunto.
Você pegaria seu violão, dedilhando-o atenciosamente pelos próximos minutos, tocando minhas músicas favoritas sem olhar-me, nem sequer de relance. Eu faria pouco de ti, abriria um livro e leria um mesmo parágrafo por pelo menos seis vezes, não absorvendo nada do conteúdo. Na verdade estava abismada, sua presença não só ressonava em cada uma das 4 paredes, seus comprimentos de onda sintonizavam até meu esôfago. Por muito mais que 10 dias você, e depois tão somente a memória de ti, me serviram como alimento. Até hoje não sei se foi você quem parou de me saciar o estômago, ou se fui eu quem fiz greve de fome. Fui infantil. Da greve de fome avancei para uma ânsia ainda mais insana, quis me atear em fogo. Inspirei náusea, virei indigestão.
Não creio que tenhamos sido tão únicos. Inúmeras vezes agarrei-me a você e não quis soltar; era quando me sentia mais banal e simples, mas foi quando descobri a completude. Era o fogo brando e acalentador, não esse calor dos infernos que me consome e ensandece. Todas as vezes que tento escrever sobre mim e só sai você, sinto-me banal e ridícula. Sinto-me incompleta, uma vez que não posso mais abraçá-lo e pedir para que fique. Não quero que volte. Tranquilamente, descanso em paz.
Escrevi 10 letras de música, e não foi uma para cada dia. Não tenho melodia para nenhuma delas e, ainda por cima, sou pura disritmia. Escrevi uma letra há algum tempo atrás, quando ainda não te conhecia, mas creio que foi para você. Sonhei um único sonho bom na vida, etéreo, rosado e leve; encontrei-o em você. Não tenho mais palavras. Reduzo frases. Tudo isso significa nada. E ao nada atiro tudo. Escrevo. Simplista. Minto.
Sim, acho Platão um tolo. Contudo, seria a maior das tolas se não reconhecesse que dele sou filha, descendente quase que direta, herdeira de um legado.

sábado, 28 de julho de 2012

Ela amou a outra desde o início, quando se deu o primeiro sorriso tímido, ajeitou o cabelo detrás da orelha deixando os piercings à mostra, desviou o olhar após encará-la brevemente. Amou-a e soube que era correspondida antes mesmo que a outra tomasse consciência que amava de volta. As coisas mínimas tem um jeito ininteligível de acontecer, o cérebro nunca consegue traduzir, percebemos alguns detalhes apenas em retrocesso - sendo que muitos deles são inventados por nós mesmos.
A garota amava-o apenas à distância, e ainda assim relutava em utilizar-se da palavra amor, era algo que possuía um peso inerente, talvez por causa da promessa da eternidade. Era muito nova e gostava de ficar sozinha. Passaria a amá-lo apenas depois que partisse. Marcou no calendário, escreveu-lhe cartas que nunca entregou, rasgou-as sem que pudesse relê-las. Descobrir seus próprios sentimentos depois que não mais os sentia era sempre coisa de absurda estranheza, como se tivesse de conhecer em si mesma outra pessoa.
Talvez eu devesse pausar mais vezes durante essa história para pesquisar palavras no dicionário. Contudo, estou cansada de recorrer às consultas para saber como me sinto, como devo me expressar, como devo proceder. A compreensão ideal é inatingível, mas tudo que sempre almejei foi compreender o que estava acontecendo ao meu redor. Não faço mais isso, pois não aconteço. Fui pega pelo marasmo, abraço o imobilismo. As duas sabiam que ambas se amavam, mas disso foram proibidas. Tantos desencontros, empecilhos, dificuldades auto-impostas... Foram, enfim, deixados de lado. Talvez o amor espere, seja paciente, duradouro, onipresente. A paixão, no entanto, clama com urgência, se retroalimenta assim como se consome na espera. A paixão não espera. O amor não existe, é impronunciável, enterra-se sob seu próprio peso.

Perdi uma já escassa capacidade para títulos

Estou em carne viva, meu coração bate, reparo, pois que sangro. Talvez não consiga poetizar como gostaria. Está tarde, não tenho rumo, estou sozinha. Dou voltas confusas pela cidade, não sei pra onde ir, não quero voltar para casa tão cedo, não obstante reluto em escolher uma direção - "a minha sensibilidade do novo é angustiante: tenho
calma só onde já tenho estado"*, encontro-me num estado intermediário da agorafobia e da claustrofobia. Mas ainda assim, anseio pelo novo. Entediei-me de mim mesma, encaro-me no espelho por alguns instantes com olhos opacos. Anseio e temo, nada espero, tão somente me escondo. É mais seguro, com minhas quatro paredes, meus dois cobertores, minhas meias de lã, meu chá de jasmim, meus livros empoeirados. Podia continuar com isso até o fim dos meus dias, repelindo a mudança, trancando-me dentro de mim. O único problema é que não gosto mais de mim. Eu que agora sou promessa que não foi cumprida, sou desperdício do intelecto, estou acima do peso desejado, sou alma intoxicada que transborda. Não tenho o que contar. Talvez esse seja meu maior problema, querer escrever sem ter exatamente o que escrever. Querer viver sem ter exatamente o que viver, sentir que não consigo continuar vivendo. Qual o propósito de uma vida longa? Plantar uma árvore, escrever um livro, ter um filho? Somos puro desmatamento, incêndio, bloqueio das ideias, superpopulação.
Mas tenho calma só onde tenho estado, só com quem já estive. Tenho pânico do novo, ao mesmo tempo em que também tenho tédio, sou tédio escorrendo pelas minhas narinas. Continuo divagando sem objetivo, incoerente e aborrecida. Amei-te, mas não me amavas. Procurei e não encontrei. Dirigi por horas a fio, atravessei madrugadas, não cheguei a lugar algum. Transcendi a fome, transcendi o sono, mas não supero a rejeição. Estou nua na frente de uma multidão - não é um sonho, é um estado de espírito -, continuo sozinha. O calor humano queima como o gelo polar.

domingo, 22 de julho de 2012

Precisava de alimento para sua imaginação, poesia para iluminar a alma, filosofia para exercitar o intelecto. Mas há dias estava fechado ensimesmado encucado desesperado consumindo-se nos cigarros que consumia. Não desiste de mim. Tinha nas mãos tudo aquilo que nunca desejara, desejava apenas aquilo que lhe fora negado incessantemente. Esquecia-se até como era sentir as diferentes variações de peso e leveza do toque, as alternâncias de intensidade, a ida da languidez à sofreguidão, à languidez novamente. Sentia apenas o cheiro da solidão e a espessura da fumaça, não lembrava mais do perfume, não distinguia cores, exceto o preto, o cinza e o branco. Nunca vou desistir de você, mas também nunca serei bom o bastante. Será possível que isto te baste? Não havia nem respondido aquela última mensagem, ignorava aquela despedida acanhada, irritava-se com aquele apelo para que ficasse bem. Fica bem, todos clamavam, dançavam em volta de seu cérebro, comprimindo-o, espetando-o, exalando uma dúvida de sabor amargo, mas odor inebriante. Enquanto tivesse a dúvida, as coisas não seriam tão finais, teria forças para levantar-se da cama, teria um arco-íris, em vez do simples e enfadonho pretobrancocinza, e além disso teria um final feliz. Por isso não responderia aquela mensagem, não daria adeus. Abraçaria a dúvida e a ambiguidade contra o seio, as pessoas nunca sabem direito o que fazem, dizem e querem, não é mesmo? A dúvida continuaria pairando, impedindo a sanidade de entrar em cena, ignorando todas as evidências óbvias fornecidas pela razão.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Suspenso

Tinha que conseguir escrever algo que não fosse sobre ele, sobre como ela estava depois dele, como ela não conseguia mais achá-lo em outro lugar, em outrem. Talvez não fizesse sentido, no fim das contas. Nem lembrava mais se aquele olhar perfurador era azulado ou esverdeado, não lembrava da cicatriz na sua mão, tampouco da inclinação da nuca, não sabia nem ao menos com qual letra começava o seu nome.

Listen to your heart, listen to your heart.

A música explodia em seus tímpanos. Ficaria surda antes de ser capaz de escutar a voz do coração. Era um coração surdo, mudo, cego e insensível o que sempre quisera. Continuava seu caminho com passos irregulares, saltava um ou outro ladrilho por impulso, não havia nenhuma ordem lógica. Sentou-se de súbito no chão de concreto que absorvia o calor do sol. Suas pernas queimavam. Tentou a posição da flor de lótus, mesmo não sabendo ao certo como fazê-la. Suas pernas queimavam, isto era certo, mas queimavam mais intensamente seus ouvidos, enquanto aquela batida que sempre tentava imitar descompassadamente com os pés martelava o cérebro.

There's an empty space inside my heart.

Fechou os olhos e prosseguiu naquela meditação de fachada. O sol queimava o couro cabeludo, o suor começava a escorrer, e sentir energia - qualquer tipo que fosse - era a última coisa que fazia, sentia mesmo era irritação e calor. Um dia ainda conseguiria elevar-se, mas talvez só no momento de sua morte. Mas tudo era música. Não sabia exatamente como criá-la, mas sabia muito bem como tocá-la dentro de si.

One day I am gonna grow wings, a chemical reaction, hysterical and useless.

Agora tentava deitar-se no chão frio de cerâmica de bruços e elevar-se uns poucos centímetros, mas a gravidade a puxava para baixo, seus músculos não aguentavam, e sentia com uma das bochechas um gélido prazer, intimamente masoquista. E era tudo que precisava, ser deixada ali no chão, sem interlúdio para a dor que era a única coisa real - nua suspensa aberta, sozinha -, só implorava por um choro que não tivesse de abafar e um sorriso que tivesse de repuxar e porra, quem liga pra qual sapato está na moda agora?, não é como se isso não fosse mudar daqui a três meses, vou continuar usando meu tênis surrado, vou andar descalça pelo concreto em chamas.

Nada fazia sentido, e por isso era tudo sobre ela. Sobre tudo que flutuava ao seu redor, tudo que tentara tocar e se desfizera na simples menção do toque, alguns objetos simplesmente me atingiam em cheio na cabeça, algumas facas eram atiradas, você tentava a todo o custo desviar. Eu era ela, mas ela não era mais eu, e nossos movimentos não se combinavam dos dois lados do espelho. Ela tinha essa ânsia, sentia todas as coisas entrando em ebulição, eu fechava-me em posição fetal no escuro.

De repente, não havia mais música, pois que não havia mais o que sentir. Agora esperneava na cama. Lembrava-se de um verso e cantarolava histérica, fora do ritmo, com a entonação incorreta:

I just wanna feel everything.

A música tinha fugido, os tímpanos estavam estourados e o sangue lhe escorria pelo canto da boca. Tudo estava suspenso, mas em um átimo estava em queda livre. Não conseguiria se elevar, a gravidade continuava ali puxando tudo para baixo.

I never cared before

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Os outros

Não era mais a mesma coisa e ele não sabia o porquê. Mas era fato que as coisas tinham mudado, já que aqueles olhos não tinham mais o mesmo poder sobre ele, não mais encontravam-se no teto de seu quarto todas as noites. Aquela garota na soleira de sua porta era capaz de pesar em seu coração como jamais pesara, mas sua desolação, seu desconsolo, o cabelo bagunçado, o suéter largo que denunciava como estava agora ao abandono, apenas lhe causavam pena.

-Tadinha, tadinha - ele sussurrava, com a cabeça dela contra o seu peito, com suas mãos passando pelos seus cabelos macios.

Mal podia acreditar que estivera tão perdidamente apaixonado por ela pelos últimos meses. Agora só sentia aquele peso, aquele peso que não queria carregar. Não conseguia sustentar aquele olhar desesperado, aquele apelo silencioso que ela sempre lançava sobre suas costas. Todo aquele desespero não era por ele. As migalhas daquela que amara tão desesperadamente estavam agora em suas mãos, e ele temia não conseguir colocá-las em seu devido lugar, temia causar mais dano do que reparo. Queria tê-la para si - ou melhor, quis tê-la para si durante muito tempo, mas ela sempre segurava sua mão frouxamente, sempre apartara seus abraços. Sempre quis outro. Ainda queria, e se pudesse estaria com ele. Ele sabia de tudo isso. Contudo, por tanto tempo não quis outras, não conseguia encontrar em mais ninguém aquele sorriso nos olhos, aquela constrangedora concepção de abandono, aquela estranheza que de alguma maneira lhe arrancara tantos suspiros. Queria apenas ter seus dedos entrelaçados com os dela.
Ela esperava alguma ação por parte dele. Estava ali, com a cabeça em seu ombro, de mãos dadas, olhos entreabertos. O desespero martelava, a náusea nunca seria suplantada. Ele se desvencilha dela, sai de fininho. Vai procurar conforto no aposento seguinte, os olhos dela não estão mais no teto de seu quarto. Mas ele conseguia farejar o desespero dela, enquanto as mãos dela ainda se agarravam à manga de sua camisa.

O que fazer? Não era mais o mesmo. Ainda segurava a mão dela com firmeza, rezando para que seus batimentos voltassem ao normal, confortava-a para que não se sentisse mais claustrofóbica, acariciava-a porquanto sabia que iria acalmá-la, iria refrear as lágrimas dela. Lágrimas que desaguavam por conta de outro. Havia de oferecê-la o conforto que pudesse, mas seu conforto encontraria em outra.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

BAR, Meu (2012)

"Quem faz de si um animal selvagem esquece a dor de ser humano"

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Cuidado

Desconverso e desvio o olhar. Sei que você quer cuidar de mim, eu é que não quero mais precisar (e querer) ser cuidada.

-Passa aqui amanhã - você insiste.

Eu continuo relutante. Não é que não queira seu carinho, é só que nunca sei medir bem essas coisas, não quero ter de me acostumar a ficar sem você, pois sei que vai decidir partir. A vida é feita de movimento, e como poderia ser de outro jeito? Tento manter as coisas estáticas, mas sou jogada de um lado para o outro com tanta violência que por vezes só fecho os olhos e peço desesperadamente para que a turbulência passe. Mas peço pra quem, se não acredito que tenha alguém de ouvidos prontos a me escutar? A maior parte dos meus apelos vai para minha força de vontade, adormecida, acomodada, quieta. Nunca me sinto pronta para adentrar um novo turbilhão, geralmente sou impelida a isso. Uma vez que passa a tempestade, fico jogada em meio aos escombros, recolhendo estilhaços e pedaços daquilo que deixara de ser, me apegando às migalhas. Resisto às mudanças.

Em termos de afetividade, sou como animal selvagem. Posso rosnar, latir e até morder de início. Não é por mal. Estou acostumada a ficar na defensiva. Mas, uma vez que me domesticam, não tenho mais vontade - e nem coragem - de voltar à dormir na estrada fria e escura. Sou como cão vira-latas que, uma vez bem afagado e alimentado, escolhe seus mestres e tem-lhes em alta conta permanentemente. Escolho também ficar às voltas com meus queridos amigos, donos do meu coração.

E se eu quisesse passar na sua casa todas as manhãs?

Sou como animal acuado, já fui domado e domesticado, porém fui demasiado maltratado por aqueles que me prometeram proteção. Devo então ser autossustentável, voltar às ruas e contar apenas comigo mesma para me defender. "Só o acaso estende os braços à quem procura abrigo e proteção", já dizia um estimado poeta.

O problema é que não sei medir essas coisas. Amor não se quantifica, é óbvio. Tampouco deve-se cristalizar. Mas como vencer a insegurança que traz essa certeza da mudança? As pessoas a gente perde, mesmo porque não há como tê-las por definitivo. Contudo, cada um que parte parece levar consigo um pedaço de mim. Sinto-me cada dia mais esvaziada. Ameixa seca sem rumo, não tenho pra onde ir, não tenho em quem confiar.

Seus braços me envolvem e me protegem do frio nesse momento. Observo a paisagem, fotografando-a com os olhos, e no instante seguinte as nuvens já flutuaram para longe do sol, o amarelo tornou-se laranja, o barco que encontrava-se à direita da minha visão, está à esquerda. O pescador recolhe a rede sem peixes, o falso suicida - apenas mais um desesperado - atira-se ao lago, mas não consegue afogar-se. As cores e os movimentos se alternam, se transmutam, é certo. Mas no mundo humano tudo permanece em imobilismo. O coração humano, que tanto oscila e lateja, insiste em uma constante: a dor.