sexta-feira, 26 de junho de 2015

dos discos arranhados

Eu não te perdoei. Eu nunca vou te perdoar e você sabe disso melhor do que eu, não é? Você sente meu olhar vazio quando eu te vejo. Você não vê espaço para me preencher de novo de amor. Amor que já transbordou por você. Você, perfeição, paciência, lar. Eu quis tanto redescobrir isso em nós. Só consegui sorrir de novo na sua presença quando percebi que era uma ideia vã. Eu fingi que te perdoei só para ser melhor que você, dando continuidade ao nosso infindável ciclo de decepções. Ao nosso jogo de intenções veladas. Tento compreender o que nos atrai de maneira tão irrefutável. Se me tornas pior ou melhor, se é esse o efeito que causo em ti – se é que somos simétricas. Se é que desferi golpes tão cruéis e sutis em ti, e foste contra-ataque. Desço de meu terreno elevado de moral e ajoelho-me perante a ti. Sou uma farsa. Se o faço é porque ainda quero te derrotar, sendo melhor do que foste comigo. Ou quero me destruir? Mas sou grata. Você me ensinou, melhor do que ninguém, que o caminho que devo trilhar é solitário. Que a compreensão é meramente momentânea, fica na beira da estrada, separa-se de nós nas bifurcações, nas curvas dos rios, nos penhascos vertiginosos. Fica nos abraços que partimos, no banco do passageiro da carona que pegamos. Quero elevar-me apenas para ser maior que você. Que tipo de elevação poderia vir de projeto tão vaidoso? Mas me ensina uma vez mais a saborear de tudo aquilo que é amargo, tudo aquilo que não flui naturalmente pela minha garganta. Você me faz insistir. Minha redenção encontra-se justamente na promessa de que serei um dia capaz de perdoar. Libertar-me no perdão. De todas as expectativas que fui capaz de depositar em você, sem que me atentasse ao que em ti desconheço. Tudo o que você recusou a partilhar. Me força a te respeitar. A te admirar dessa distância imposta entre nós – que um dia cri inexistente. A sentir o solo instável quando me coloco acima de ti, de outrem. Eu não preciso te perdoar. Eu preciso esquecer tudo aquilo que eu já pensei que era meu e teu. Quem eu achava que era você. Não há como estancar a ferida, pois que teria que me iludir novamente. Amplio-a para abarcar todas as decepções que eu sei que você ainda é capaz de cometer. Não por maldade, nunca por maldade. Talvez por ser você, assim, tão diferente de mim. Por participar do jogo que inventamos. Por estar presa na mesma teia que eu – por dividir protagonismo que eu queria só para mim. Eu não consigo me perdoar, por essa autoimagem casta, limpa, incorruptível que inevitavelmente faço de mim. Usávamos espelhos quebrados, você sabe disso? Talvez você até fosse reflexo de um dos meus eus dilacerados. Que não foram capazes de te enxergar, para além de mim.
Reviro-me toda perante a ti e vejo que não há a necessidade de perdoar. Há indícios irrefutáveis... o que nos liga... talvez só você seja capaz de me compreender.

(É recíproco, não é?)  

terça-feira, 23 de junho de 2015

verborragia interna é o timbre do capeta, ele disse

eu gosto de me machucar. abrir a tampa do fosso e mergulhar a cabeça, ficar até vomitar no vômito. me disseram que da lama que vem o lótus. do meu sangue talvez verta-se a resposta. se é o que busco. se me satisfaço com o que encontro. mastigo leniente as pétalas dessa dor. ferida canibal alimentando-se de casca. sorvendo pus como se seiva. onde estão as ataduras que você colocou? calma mãe, amanhã eu ligo pro médico. essa fraqueza não é só anemia, é claustrofobia, é paralisia cerebral, é masturbação excessiva. mãos atadas, faça-me parar. lobotomia? sim. o tratamento está à discrição do paciente. claro, depende do seu livre arbítrio. mas eu gosto de me machucar. tenho sede de lágrima, fome de chaga. pandora epiléptica na antessala da decepção. eu gosto de ver a vida esvaindo-se de mim, pra pedir por uma nova chance. jogar tudo fora porque é melhor pensar que o que tenho não é muito. dá pra conseguir tudo de novo, novo. muitos lados de muitos mundos. não é preciso correr para errar. não preciso que me protejam dos lobos. vicio-me nas cinzas daquela decepção. se quiseres, desfira quantos golpes desejar. penetra-me fundo e permanece, parasita vil. miro o precipício, incólume. a fatalidade não seduz a quem gosta de se machucar. o avesso da dor também dói e é prazer. é bom que não haja limites. há fluidez mecânica. em um sólido as tensões derivam de deformações elásticas sofridas sob ação de forças externas. sinto as criaturas que farejam o ar ao meu redor soprando seu bafo quente em meus eus passados transmutados. em um fluído, as tensões derivam do fluxo resultante da aplicação dessas forças externas. sinto quem disse achou pensou que amou transbordando lágrimas sobre meus destroços. a propriedade que um fluído tem de apresentar resistência às tensões cisalhantes é chamada viscosidade. se ao menos amassem e se ao menos soubessem como me despedaço sem hesitação. por isso diz-se que os sólidos são materiais elásticos e os fluídos materiais viscosos. quebro tanto que não quebro mais, acho. por isso gosto de me machucar, deixar o sangue quente acariciar-se pela língua lupina, o membro inerte gangrenar, o sentimento puro sujar-se e, enfim, putrefação fétida amputada. viscolástica. quanto mais sujo for esse poço mais leve, clara, lúcida será a flor,

por favor


pois tenho essa chaga comendo a razão


armas em riste,
porte de armadura
hipnose aromática,
nessa vertigem

eu me atiro
e não se finda
qual fígado que pro métis
perpetuamente dilacerado
na mira do olhar fumegante
do Outro-corvo

lava, pó, Nada - mecânica do descontínuo
indefinidamente escuta lasciva
das vozes aveludadas
vermelhas
tartáreas
preci
pita
m


ah, voluptuosa queda
na Garganta flamejante
de ambrosia,
catarro,
fel. 


eu gosto de me machucar.



delirium tremens

schildern Sie Ihre Traurigkeiten und Wünsche
die vorübergehenden Gedanken 
und den Glauben an irgendeine Schönheit

(Rainer Maria Rilke)

loucura esperança loucura esperança loucura es
tu
pi
dez
pinga
dos anseios que transpiro.

tépido
estado de espírito
interrompido.

-fé em qualquer beleza,
disse o poeta dos anjos
terríveis.

abra os ouvidos
prum universo mudo,
silenciado demônio incorpóreo
puerperal
posterior à tempestade

que são essas vozes
abafando o claustro
loucura-esperança
em
bria
guez

-quais queres?,
indago ao poeta
fumaça de meu cigarro,
servindo-nos licor de anis.
balbuciando sua própria saliva,
deixa-me e diz:
cessa de ressentir o querer.

só sobejo suplício
escaldante glaciação
floral pútrida.

A grande Beleza
transpassa a puerilidade estetizante,
de lava, pó, Nada.
Nunca mais?

isso que dá ouvir conselho de poeta

-fé no desapego,
concluimos sôfregos
ainda
aferrados ao gozo.

terça-feira, 16 de junho de 2015

aloof
alone
a stone
is a calcified tear
of the universe.

terrain
smoked
in vain
over-ly-terrif-ied-Yin
mysterious Tehran
[foreign world within].

ask not for a woman
but for an angel
made of light-ness
which a woman transcends
not into. [for she s-carries
so much – so many – stones]

we shall not meet
but hopelessly seek
not one. An Other.

otherness!
is it your voice
in this unfathomable
inescapable grey room?
[how could the self be the
one
to kill loneliness?]

plenitude
a meeting with God?
or the endless River
s-tumbling, falling starfishes
flowing inspite of
what is petrified.

wavelength suffering
which once was the same:
river-seeks-ocean-through-gravity
salt and earth water weights
as poet meets death.
despite the strict social restraint on women in classical Antiquity,
they had very powerful goddesses
Athena:
the ability to resist marriage and motherhood.

i take it our strength only reveals itself when we negate other women
to join men in their endeavours?
who told you so?

segunda-feira, 15 de junho de 2015

estacionário


(dante rossetti - perséfone)


I

o que floresce em meio ao caos,
se os lobos mastigam o que é cerrado,
os escorpiões continuam afogando
os sapos? E o mundo permanece
si len ci a do.
fragmentos daquele último abraço,
partem-se da hermética caixa torácica.
farfalhaste de olhos pedido de socorro,
eu sei.
minha fé ficou na infância e
a confiança, reside somente na (tua)
natureza.

a you and a me and chaos theory,
lost at the abyssal liquidity,
of circles within cycles within seasons,
shall we find the loophole?
s’il fallait le paradis
même si on lui a perdu
escafandristas, milênios, milênios de
                                                      [verão
quand nous étions sous des couleures
qui nous ont teint avec découverte.
but I might paint it black
before you paint me blue
only because I do not seek Lilac Wine,
ácido, denso, unsteady like


II

Seu gozo às alturas,
meu gozo em ti
e na mais suave tessitura,
que abafou os tambores da traição
- interrompido -
eu (es)colhia flores e alcunha de Perséfone,
tuas vísceras devorei-as todas cruas,
com teus medos untei minhas feridas,
se és Adônis ou Dionísio.

III

– contingência – ipseidade – contiguidade
na concretude desértica
baseada em planalto estéril
onde não se faz história sem métrica.
Chronos e Atlas torturados não só pelo raio,
acometidos com tétano infecto,
da labareda sifilítica
de que que eu tô falando?
 Acho que você olha pra mim, mas não enxerga.
É o Nada?
Ou é a ti mesmo que buscas nesse abismo?
me disseram que coragem grande é poder dizer sim
não me afugento,
mas não sou algoz.
O que me resta, me cabe, te toca?

IV

minha mãe me disse: filha, cuidado com os homens,
meu pai me disse: filha, cuidado com o mundo,
meu irmão perguntou: você ainda tem medo do escuro?
eu que não sei, acho que temo a tudo,
tanto que me jogo epilepticamente lado-a-lado
à côté des mes sentiments, couvertes par inertie
 fumo no pulmão e vinho afogando meu coração.
pé em que estrada, senão a dos caminhos que bifurcam?
pensaram que estar sempre alerta fosse cessar sofrer,
mas não sabem que me doo desde o parto.
para quê cuidar com homens? que amam
sem amar, sem-paixão
cegam ao não enxergar,
– je voudrais ne jamais t’avoir connu, Baudelaire.
antes eu não era insone,
antes eu acreditava.
mentira!
eu disse a eles: nada, pois sou a que sempre se cala.
e se transfigura em sombra taciturna,
para cultuar qualquer luz que se distancie,
qualquer reflexo translúcido que prometa
me flutuar para longe do coração humano;

e além do ponto, a porta que nunca se abre.

(V
se primavera,
outono espera?)

quinta-feira, 11 de junho de 2015

It took me a while to realize how you were always trying to force me to smile, and would never understand when I made faces. You wore a mask and it seems you expected me to do it too. It was your way of trying to make me be someone else fit for you. I am irony and tears and burps - and sometimes also smiles, mostly eye-smiles. And you didn't see through the surface.

Could you just smile for the picture, for christ's sake?

Oh dear, christ's so long gone... and that wasn't the springtime of my loving. Winter's colors don't suit me.

quarta-feira, 10 de junho de 2015

jovic

Ele balançava a perna impacientemente, enquanto ela remexia sua mochila.
-Esqueceu o meu isqueiro de novo?
Ela lançou-lhe um olhar perfurante.
-Meu isqueiro – retrucou com um resmungo e continuou a vasculhar sua mochila. – O problema não é esse.
Parecia extremamente agoniada. Ele colocou a mão no ombro dela e deu algumas palmadinhas. Tudo aquilo seria necessidade de fumar um cigarro?
-Tudo bem, bom que a gente não fuma – ele disse, com um tom um pouco decepcionado.
Ela bufou.
-O problema – continuou, ignorando o consolo do amigo – é que quando eu tenho o cigarro, falta o isqueiro. Hoje trouxe dois isqueiros – abriu o punho e mostrou-lhe um isqueiro azul e outro branco, seu semblante irritado.
O enunciado parecia uma profunda questão existencial. Ele entendeu. De que servia, afinal, esse excesso de isqueiros se não havia sequer um cigarro para que pudessem partilhar?
-Sabe, acho que eu venho travestindo desejo carnal com carência emocional. – ele disse – Afinal, não acho que preciso de amor. Queria mesmo era trepar.
Ela riu, não acreditando em sequer uma palavra do que ele havia dito. Mas deixou pra lá, não quis contestá-lo, achava cruel arrancar alguém do conforto de uma negação para uma realidade de privação.
-Eu acho que tava tudo bem pra mim, sabe. – ela respondeu – Acho que eu nem desejo mais nada de ninguém não. O que eu quero é a cessação do desejo e tal, tô investindo nessa coisa budista.
A reação dele foi instantânea: bufou sonoramente e em seguida gargalhou.
-Sei!
Troca de olhares incrédulos. Nenhum deles acreditava no que o outro havia dito. Apesar disso, ambos se conheciam. Não eram mentiras – aquilo era a compreensão. Ao menos por um momento.
-Como eu precisava desse cigarro – ela lamentou.
-Você não precisa desse cigarro, Buda – caçoou ele.
Ela fechou os olhos e respirou fundo.
-Cara, a gente precisa estudar.