segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Lembrancinha

Serei condescendente. Guardo um souvenir de você, enquanto espero pacientemente ouvir alguma notícia. Talvez se vá com a mesma rapidez que chegou. Eu mesma pensei ser apenas um estranho com quem cruzei na rua. Interessei-me como me interesso por todas coisas que respiram, olhei-te de soslaio e depois virei a cara. Te vi e fingi não reparar. Mal sabia que me vias também. Mas quão bem me enxergas agora? Bem ouço dizer que sou intransponível, e terás que olhar por muito tempo em meus olhos para poder discernir a tensa fronteira entre minhas pupilas negras e os olhos castanhos escuros, que tendem a mesclar-se, fundindo-se na escuridão.
Guardo um pedacinho teu, ao menos por enquanto. Se não vens, amasso, rasgo e jogo fora, de modo a ter espaço pra outras lembranças. Não és reciclável, talvez sejas perecível - espero que ao menos não sejas inflamável.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

O mendigo implorava, mas as pessoas não se importavam. Eu relutei mentalmente por alguns segundos, ainda que continuando ao ritmo de meus passos. Cheguei a olhá-lo de relance - nunca nos olhos - vi suas roupas imundas, seus dentes podres. Pensei se tinha algum trocado, mas poxa, só tinha uma nota de dez. E ele pedia a Deus, a todos os santos, aos meros mortais. Sua voz era rouca e, pouco eloquente, muito ansioso, atropelava vogais. Parecia desesperado. Mas eu não sentia seu desespero. Eu me preocupava com coisas outras - amor, liberdade -, eu tinha aquela fome como ideal, não a sentia no estômago. Não me preocupava com o que comer no jantar, e sim se você iria voltar a tempo e conversar comigo sobre seu dia. Pisquei, vi seu rosto em minha fronte, sua expressão desafiadora e o mendigo esvaiu-se de minha memória. Montei um cenário para nós, e você ainda se preocupava em infiltrar em minha mente. Mal sabia o enorme espaço que já ocupava como delegação oficial, e queria ser espião sorrateiro. Eu daria apenas um sorriso apologético como resposta ao seu costumeiro "O que você está pensando?"

-Às vezes me pergunto se é porque seus pensamentos são tão complexos que você não sabe traduzi-los para os leigos.

-Na maior parte do tempo, é que não penso em nada.

Não penso no que terá para o jantar, sei que vai ter comida. Mas tal certeza não me basta. Quero amor e quero liberdade. Penso em comida, mas em meu modo burguês [filha de profissionais liberais pseudo intelectuais], buscando o prazer gastronômico, fazendo das refeições horas de lazer, não de realização da necessidade fisiológica. Não uma necessidade, jamais necessidade. O que eu realmente precisava era de amor e liberdade. Não pensava em dinheiro. Mas precisava de roupas novas, que não estivessem impregnadas com seu perfume, precisava de sapatos novos, que não estivessem classificados por seus adjetivos, sapatos que não fossem "engraçados".

"Para superar um amor platônico, só uma foda homérica", dizia o grafite na parede branca.

Mas sei eu se ao menos Platão amou e Homero fodeu? Não, pois não são sequer homens reais, ao menos não são pertencentes à minha realidade. Platão e Homero não eram burgueses, que crime seria classificá-los na categoria de homens de nossa época! [Não sabemos nem se Homero foi uma pessoa, não sabemos se Platão amou]
Os pedreiros passam por mim e também evito encará-los de frente. Fixo um ponto no horizonte e continuo obstinada, enquanto lacrimejo. Devem atravessar o rio, rumo às suas casas nesse final do dia. Trabalham em nossas casas, e depois atravessam o rio para o cheiro de esgoto e moscas varejeiras. Sou incapaz de olhá-los nos olhos, enquanto uma ânsia invade meu ventre, e não é a fome: terá você voltado para casa? Ou também atravessou um rio?

Sinto fome. Olho os mais diversos alimentos e ingredientes no armário. Tenho preguiça. Pego um pão, abro com os dedos e passo um pouco de manteiga. Forro o estomago, mas ainda não me sinto saciada e você não está aqui. Vejo o dia se desvanecer observando, do sofá, a sacada. Preciso de roupas novas, mas não ligo pra dinheiro. Minha necessidade não vem do desejo de ostentação, e sim de um apelo desesperado à renovação. Se não posso renovar meu espírito, queria ao menos mudar minha imagem. Tentar ser outra, já que as máscaras que mais importam ao mundo burguês, e não a questão da fome.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Um ato de bravura. Lapso na lucidez. Assomo de coragem. Surto, estupidez.

Tudo flutuava, as pessoas envoltas numa aura etérea. Só o teu perfume parecia real, invadindo-me as vias aéreas com violência, deixando-me intoxicada mais uma vez.

sábado, 15 de setembro de 2012

Acordei de um sono tão leve, parece-me que não cheguei a adormecer em primeiro lugar. Remanesço, permito-me recordar; adormeci pois estive em outro lugar. Uma tribo de bestas balbuciantes, o sombrio fondu au noir, pitch-black [o desconhecimento de sua própria língua], ermo escuro inexplicável - irrefutável - de suas pupilas. Um contraste, o fúnebre e intransponível da janela pra tua alma nadando no mais límpido e aquoso verde. Uma tranquilidade fingida, uma placidez de continuidade. Porque pensas que me vês?, tuas pupilas estão fechadas, não entra luz.

Não abri os olhos porque a claridade havia de me cegar, eu que cultuei o escuro por tantos meses. Não estava pronta para a mudança, mas estive sendo impelida a ela, não havia como negá-la. Contorci-me incessantemente durante o quase sono, já estava dolorida e transpirava exaustivamente. As bestas da tribo dançavam, eu bem sentia o som das batucadas, mas permaneci imóvel. Onde estava aquela fascinação que tornou-se arrepio na espinha? No meu caso fascínio era sempre interesse breve e supérfluo, nada me prende. Nada me prende, só o meu sofrimento.

Os barulhos de britadeira e o calor abafado do quarto com janela e porta fechadas começava a sobrepor os tambores tribais e o crepitar da fogueira. Acordo de meu devaneio com uma certeza.

As sombras dançam ao meu redor - se são distinguíveis é porque há luz.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Soçobrar

soçobrar
v. tr.
1. Virar violentamente de baixo para cima, voltar; abismar, perturbar.
v. intr.
2. Virar-se de baixo para cima; naufragar, abismar-se.
3. [Figurado] Perder-se, ter mau êxito; desanimar, perder o ânimo, esmorecer.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Hugo

Hugo não me amava. Não é possível que se acredite nesse papo furado de que ele me amava de uma maneira diferente. Eu sei. Porque eu ficava febril quando passava algum tempo que nós não nos víamos, porque eu que fiquei de cama todas as vezes que ele tinha trabalho demais para pode me ver, porque eu entrei em colapso nervoso ao perceber que ele não se esforçava nem metade do que eu me esforcei. Tantas energias gastas em vão, e ele ainda escapulia para ir no bar tomar uma cerva com os brothers. Dizem que é nessas coisas que a diferença entre homens e mulheres se mostra de maneira brutal, quando eles precisam desses pequenos escapes do stress que aparentemente nós provocamos, e nós somos incapazes de compreendê-los. E eles não são capazes de compreender porque isso nos magoa desse tanto.

O ponto é que ele não moveu uma palha. Continuaria comigo, mas não por amor, sim por conforto, por imobilismo. E o desespero de minha paixão não pôde lidar com tamanha crueldade. Sim, pois era em sua infinita gentileza que repousava a agudeza de sua crueldade. Era tortura. Fingia que se preocupava, fazia-se de atencioso, incorporou o próprio Shakespeare da primeira vez que ameacei deixá-lo, equiparou seu amor à imensidão dos céus e dos mares, elevou-me ao pedestal de Julieta, comoveu-me e conquistou-me com suas palavras. Mas me perdeu justamente por sua falta de ação. Sua falta de sofrimento, de intensidade, de paixão.

Nunca saberei se fui insana, deixando um homem tão bom e tão realizado escapar. Sim, era o que todos diziam. Perdi um partidão. Ninguém entenderia que foi Hugo quem me deixou escapar. E eu me demorei o máximo que pude ao trancar a porta, brincando com o molho de chaves e forçando um sorriso para ele. Meus cabelos caóticos e os lábios retorcidos deviam dar-me a aparência de um espantalho, tenho certeza. Mas ele permaneceu inerte, olhando-me com seus olhos aquosos. Nunca derramou uma lágrima, outro indício de que não me amava. Eu que passei tantos dias chorando por ele, chorando por qualquer coisa que me lembrasse a tragédia que era amar tão desesperadamente e ser tão ignorada. Ele conseguiu sorrir. Certamente, foi um sorriso triste, já nostálgico pelos afagos que eu não mais concederia, pelos gemidos insanos que ele não mais ouviria, pelas únicas 5 receitas que eu sabia cozinhar (3 massas, 1 assado e 1 sobremesa) e que ele não mais apreciaria, meio enjoado mas sempre solícito, soltando sempre um Hm, que delícia, amor que só me convenceu da primeira vez, depois passou a me irritar mais do que o silêncio que dominaria o resto da refeição.

Hugo foi o único que partiu meu coração dessa maneira inexplicável, irremedável. Talvez daqui há alguns anos eu tenha de alterar esse trecho da minha história, e possivelmente agora sou incapaz de pensar com objetividade. Já tivera outros envolvimentos amorosos, mas ninguém fora tão cruel em sua gentileza. Eu padecia de calafrios mesmo estando em seus braços, mesmo sentindo sua respiração em minha nuca - por mais que seu corpo tivesse estado sobre o meu há poucos minutos. Hugo - a pessoa real, Hugo Gouvêa Barbosa - era um cadáver. Movia-se moroso, meditando sonolento. Mormente, era zumbi, sonâmbulo, trêbado. Executava suas funções no modo automático, e agora mudo de ideia e digo que se achegava mais a um robô do que um semi morto. Mantinha sua relação comigo no modo automático. Chegava a escutar um quê de voz eletrônica enquanto eu escovava meus dentes e ele chamava Amor, vem pra cama. O problema não era a mesmice, era a falta de encanto. Estavam os dois tão intrinsecamente interligados?

Então, porque eu sentia essa falta filha da puta dele? Porque pensei em eu própria abrir meu peito com um facão, para sentir a vermelhidão e ouvir uma pulsação que andava demasiado baixa? Como consegui passar duas semanas de cama, só saindo para executar minhas necessidades fisiológicas e provar refeições parcas e absurdas? (uma cenoura, uma barra de chocolate, um saco de amendoim). Só podia ser porque eu o amava de verdade. Hugo não ficava de cama. Ele pestanejava, levemente surpreso como assim você quer me deixar? mas então conformava-se com o acontecido, simplesmente. No instante seguinte. Não contestava. Não impediu-me de partir. Não deixou escapar sequer um lamento, um soluço esganiçado, uma palavra chula. Raramente xingava quando estava falando comigo. Por isso acho que era um robô, sempre tão controlado, tão calculado, cabelos escovados, camisa social bem passada, fazia o nó da gravata e beijava-me com lábios refrescantes de Colgate.

Achei que estava partindo rumo a algo melhor, maior. Que conseguia ver o universo por muitas perspectivas, em vez só daquele mundinho fechado em si que eram as tardes de domingo e as noites pacatas naquele apartamento. Qualquer coisa seria melhor do que o fato reiterado comprovado diariamente de que ele não me amava. Livrar-me-ia da angústia juvenil, dos surtos psicoses neuroses diários, dos choros torrenciais abafados no banheiro, com o chuveiro ligado. Claro que ele me escutava, apesar de tudo. Mas nunca disse nada, só me envolvia em seus braços e beijava repetidamente meus ombros e minha nuca. Hugo não me entendia, mas isso seria facilmente perdoável se ao menos me amasse. Talvez não me entender o carcomesse de maneira bruta, e ele parava no ponto inicial de sua incompreensão para não deixar que eu o consumisse com meu desespero, para que eu não o engolisse, para que ele não passasse a enxergar o mundo em tons sombrios como eu enxergo. Todo seu sistema haveria de ruir, pane, curto-circuito. O motor dele estava fundado em suas crenças simples de classe média, enquanto conseguisse ter seu bom apartamento, ter um bom carro, um bom emprego, poder tomar umas cervas com os brother, assistir o jogo do Flamengo, viajar pra praia, ter um bom plano de tv por assinatura... Como era possível que eu o amasse?

Era porque eu queria ser como ele. Não via nada de errado em ser como ele, almejava aspirava desejava ávida impaciente sôfrega bêbada louca drogada maluca pirada piranha descabelada caso de hospício. Mas por alguma razão eu não era que nem ele, eu era eu. E ele não tinha sido comigo como eu desejei que fosse. Pra falar a verdade, ele não deixava nada faltar. Sempre atencioso e gentil - em excesso, em demasia, em descomedimento. Como que por costume. Como que por boa educação, como se eu fosse uma criança precisando de cuidado e supervisão. E bem, pelo modo como agia - e ainda ajo - talvez seja isso mesmo. Mas não buscava nele um pai, e sim um amante, não queria um supervisor, e sim um companheiro.

Talvez Hugo me amasse. Mas se ele amasse com certeza, teria eu sequer dúvida disso? Não devia sentir o amor emanando de seus olhos, expelido de seus poros? Eu parti em desvario, quis voltar no segundo em que cruzei o corredor, mas conhecendo Hugo, sabia que ele não estaria esperando perto da porta. Não, ele teria no máximo suspirado pesadamente, e se dirigido à cozinha para terminar sua xícara de café antes de partir para mais um dia enfadonhamente programado na burocracia. Ah, mas ele era um homem importante!

Se Hugo me amava ou não, não é nem mais a questão. Pergunto-me se deixá-lo foi ato de loucura ou de compaixão, e não chego jamais à uma resposta! Quantas noites de sono Hugo já me tomou... Se fosse só isso. Ele tirou também minha perspectiva, minha risada pelo nariz que sempre saia com muita facilidade, minha confiança em mim mesma. Quisera eu ser como ele, um bem sucedido burocrata. Eu sei que não escolheria uma doida como eu como companhia. Não, eu me casaria com uma menina simples de cabelos longos que já saberia o nome dos nossos dois filhos e do cachorro. Sei que tudo que ele me tirou, foi porque eu joguei pela janela. Hugo jamais tiraria algo de alguém, ele é bom demais, muito íntegro, certinho.

Mas ele me deu uma tragédia para escrever. Agarro-me a meu próprio drama, aninhando-o junto a meu peito como a mais amada cria da prole, exalo seu perfume e agora o deixo fluir pelos dedos. E agora vejo como sou banal, e nem padeço por um motivo original, nem de maneira nova. Agonizo, mas não rastejo.

sábado, 8 de setembro de 2012

Contar, sempre dificultoso

Pra que contar, se não vão entender?

A cada dia que passa penso que não há o que se entender. O nó está desfeito, eu o desatei com minhas próprias mãos, ao mesmo tempo em que o afrouxava, o aperto em meu peito se intensificava. Mas não posso clamar de volta o que já não é mais meu. Ah, e nunca senti que fosse. Talvez porque não tenho sentimento de posse, não sou de demarcar o território. Só que seu olhar no meu era pra mim.

Quero-te de volta tão somente à medida em que és apenas uma figura que se distancia rumo ao horizonte infindo, impalpável. Quando te aproximas, vens para me envolver-me num abraço frouxo, numa aura fosca. Não sinto o impasse do irresoluto: não quis tentar quando ainda me era possível, e agora já és intransponível - e eu não deixo meu orgulho, só posso me agarrar a ele nessa solidão perpétua. Estamos cansados. És mais ideia fixa que paixão.

Há o que contar, não estará esgotada essa história? Se pudesse, escreveria o recomeço, mas temo não ter os artifícios literários necessários para tal. Temo, acima de tudo. Contento-me com o pouco que já conquistei, afastamos a estranheza e agora sorrimos. Mas seu abraço é frouxo. Mal me tocas e num repente já soltaste. Estou intangível? Já soltou. Ainda estou apegada.

Mas toda volta é fracasso, admitir os erros, ter de confessar crimes não cometidos com o intuito de alcançar alguém que teme-se não estar mais lá, sentido-se da mesma maneira "ainda". Porque sendo sentimentos tão frugais, haviam de permanecer?, virando substrato, subsídio. Vais embora sem despedida - porque permanece essa sensação de que fui eu que te deixei escapar? Talvez também peque por abraços frouxos, e minha testa não mais se encaixe perfeitamente na curva de seu pescoço. A muito custo aprendi que não devia ter dito "Estou cansada, vou-me embora" e sim "Estou cansada, leve-me para casa".

Não vou contar, nem para ti. Guardo junto a mim esse sentimento disforme e indefinido, essa brisa refrescante que foi poder sorrir e ter meu sorriso retribuído novamente.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

No Balaio

Então conversamos sobre perspectivas de futuro. Você ávida por fumar um baseado, eu matando minha aula. Não consegui me forçar a descer do carro, atravessar o corredor, adentrar o anfiteatro. Por algum motivo, a fenomenologia aplicada à filosofia da história não me parecia tão imperdível assim, possivelmente porque eu não havia entendido porra nenhuma daquela merda. Também não me esforcei, arrastei meus olhos pelo texto, incrédula e preguiçosa.

Não escrevi um livro ainda. A esperança era tão grande há até poucos anos atrás, e mesmo confiança em mim mesma. Não é que não sinto mais o potencial, a questão é a esperança, a finalidade que eu via em se fazer coisas, em ser realizada, em ser aprovada, em ser reconhecida. Foda-se essa merda. Abracei a mediocridade e sinto-me confortável assim. Porque as pessoas recriminam tanto o confortável, o cômodo? Ah, as expectativas foram todas deixadas para trás. Não, não me preocupo com o futuro.
Não quero ter filhos. Não quero criar uma pessoa, ter alguém que dependa de mim, ter alguém a quem eu deva oferecer consolo, quando sei bem que não há alento nesse mundo. Conheço algo efetivo: um abraço, um afago, um colo. Mas é um calor momentâneo, e o fim do momento sempre traz o desespero.

Poderia plantar várias árvores, assim compensaria os livros que não escreverei e os filhos que não terei. Encontrar-te-ia no Balaio, assim como fora planejado, e tentaríamos esgotar nossos assuntos, sempre inesgotáveis. Nossas perspectivas, ainda mais desoladoras. Você fumaria todo seu maço de cigarros, eu pediria uns tragos. Não mais que isso. Por alguma razão, ainda insistia em continuar respirando.
Será que ainda lembraríamos de nossos grandes amores da juventude? A profecia havia de se concretizar (ah,a self fulfiling prophecy of endless possibility ), e você nunca mais amaria alguém como o amou?

Eu me recuso a corroborar com isso. Bem, concordo em parte, o clichê nem por causa de sua característica rasa e repetitiva deixava de ser válido: primeiro amor a gente nunca esquece. Ainda mais um amor como esse. Mas amor a gente sempre encontra, mesmo na sarjeta, mesmo nas desconfianças, mesmo na recusa. Amor nos é negado, amor nos é dado sem que queiramos responder. O amor nunca é o amor dos livros, dos outros séculos, d'O Banquete do Platão e, ainda assim, em diversos momentos apresenta-se em algumas dessas formas. Possivelmente em retrospecto. Possivelmente na passagem da realidade à narração, à estrutura início-meio-fim. Até que compreendi o que o cara da fenomenologia estava falando, mas não consigo mais ver a aplicabilidade, não consigo mais ver um sentido - em nada.

Você sabe que eu acredito que no fim tudo é trágico e, depois do fim tudo é vão. Fica aquela lembrança, aquele sorriso, aquele orgasmo, que seja - fica uma sensação muito ruim, a dor da ferida fantasma, cicatriz que insiste em queimar ou então a idealização.

Pra mim nunca ficou uma amizade, não vinda do amor consumado. Daqui há alguns anos, quando estivermos conversando no Balaio, será que eu terei conseguido fazer de um ex-amante um amigo? Amigos tornam-se amantes com relativa facilidade. Será que terei compreendido que a reversão é inescrutável? Teremos nos tornado indiferente à nossas perdas? Ou ainda estaremos scratching our eternal itch, a twentieth century bitch?

Indago-me se nos importaremos quando eles surgissem com suas mulheres, talvez até recebessemos convites para os casamentos respectivos. Suas simple girls, modelos perfeitos que falhamos em ser. Falhamos na tentativa, ou na falta de tentativa? Saímos avessas ao modelo, mas seria isso irreversível, negativo, não atraente?

Não sei, nunca consegui me reduzir dessa maneira. Não me vejo simple girl desde pelo menos os 12 anos, quando era uma garotinha que queria ter seu primeiro beijo. Mas, ainda assim, eu queria tanta coisa além disso, para além do romance, eu queria a aventura, a ação, o suspense, o terror!

Talvez então eu recusasse uma última tragada do seu cigarro e dissesse:

-Quisera eu nunca ter crescido. Perdi meus sonhos no meio do caminho. Um dia já pude ser tudo o que quisesse, agora não tenho mais nem o querer. Mesmo quando quero o nada, sou impelida a esse mundo hostil cheio de obrigações e problemas.
Esse é um texto ingênuo e hipotético, por essência. Mas seu próprio processo já me foi doloroso como os partos pelos quais não pretendo passar.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Uma insustentável leveza

Agora escrevo mais porque sinto em plenitude o turbilhão. Se sigo o turbilhão, ah como vivo! Escrevo mais porque vivo, descrevendo mais do que ideando; sentindo o peso de um toque, o corte de uma faca, a ânsia da coisa errada, sabendo como se deram e como valeram. Descrevo-los para mantê-los em mente, não perdê-los de vida. O saber de que viver é bom é o mais valioso dos saberes! O pensamento é tão cheio de complexidades, mas a ação é simplória e só requer força. Um sopro.

O sopro que deixaste escapulir quando cochichaste em meu ouvido, que fez com que vibrasse a pulsação sanguínea numa frequência superior. Se a força motriz vem de outrem, como ser livre? Mas ser livre não é ser só, ser livre é interiorizar essa força e passá-la adiante, em um impulso irrefreável, inconsciente ainda que pensado e calculado.

Ele disparou, impiedoso. Acorrentou-me mas não tomou-me para si. Liberto-me com a força de um universo. O amor continua, a esperança persevera, como um empuxo. Qualquer peso só complementa a gravidade, e quero ser leve leve leve, a ponto de flutuar! Deixo, então, o amor se dissipar. Ele persevera, mas não mais me pesa sobre os ombros.

O que dizer?

O que dizer? Nunca me senti tão amada, e também nunca me senti tão livre. Não tenho alguém, tenho toda gente que já conheci e, ainda assim, tenho a mim mesma. Não tenho direção, mas uma coragem inenarrável, insuperável surge em minhas mãos. Tenho o poder da criação, ainda que escolha não utilizá-lo. Por muito tempo olho para a parede, observo uma paisagem imaginária, desperdiço, vivo plenamente minha vida burguesa. Sou filha de meu tempo, afinal.

Usurária, usurária!, exclama a consciência. Quero tudo de volta e em dobro. Não sou de me dar, por vezes me empresto. Terás um momento e é bom que dele não se esqueças. Posso enforcar-me com correntes no ato da luta pela libertação, mas não trancarei conscientemente meu coração.

Você me escapuliu em questão de instantes. Não é que tenhas fugido, eu que o expulsei, ainda que sem forças, ainda que sem compreensão. Não aprecio àqueles que não me apreciam, parece discurso e bobagem, mas foi lição bem aprendida, SS em histórico escolar.

Nunca me senti tão amada - e tão mal acostumada. Esperneio quando não ganho atenção, é meu jeito de brincar. O amor materializa-se em presentes, mas também em gestos. Aquela ligação, aquela frase, aquela presença; o afago no escuro, a espera enfim finda, todos habitam permanentemente meu corpo e transbordam em correspondência.

E, se tudo isso me parece insuficiente, inalcançável, se nada me atinge - ou acaso me atinja em demasia -, Clarice e Virginia me entendem. Ah, a alegria mansa, a felicidade natural!

[E você também, Raquel. Ao menos quero mais que tudo que me entenda]

É na solidão que me esbaldo, que sou plena. Caso me for fragmentar mais uma vez, espero ao menos despedaçar-me em milhões de pedaços, num estatelamento irreversível, ser acidente de trânsito e não placa de pare!, virar areia, poeira cósmica - explosão orgásmica.

The amazing sounds

Você, menina
De sorrisos joviais
Juventude pueril

Você, dissmulada
De gemidos quentes
Enfim, madura

Puxe-me para perto
Arranque-me o couro
Faça-me eterno
Com eternidade de momento

Que ecoem indefinitamente
Os espetaculares sons
Não da poesia, da música
[não sou poeta]
E sim do êxtase do corpo
e da mente.