quarta-feira, 28 de setembro de 2011

do Desassossego

"Entrei no barbeiro no modo do costume, com o prazer
de me ser fácil entrar sem constrangimento nas casas conhecidas.
A minha sensibilidade do novo é angustiante: tenho
calma só onde já tenho estado."

"Tenho amor a isto, talvez porque
não tenha mais nada que amar — ou talvez, também, porque
nada valha o amor de uma alma, e, se temos por sentimento
que o dar, tanto vale dá-lo ao pequeno aspecto do meu tinteiro
como à grande indiferença das estrelas."


"Irrita-me a felicidade de todos estes homens que não sabem
que são infelizes. A sua vida humana é cheia de tudo
quanto constituiria uma série de angústias para uma sensibilidade
verdadeira. Mas, como a sua verdadeira vida é vegetativa,
o que sofrem passa por eles sem lhes tocar na alma, e
vivem uma vida que se pode comparar somente a de um homem
com dor de dentes que houvesse recebido uma fortuna
— a fortuna autêntica de estar vivendo sem dar por isso, o
maior dom que os deuses concedem, porque é o dom de lhes
ser semelhante, superior como eles (ainda que de outro
modo) à alegria e à dor."

"Agir, eis a inteligência verdadeira. Serei o que quiser.
Mas tenho que querer o que for. O êxito está em ter êxito, e
não em ter condições de êxito. Condições de palácio tem
qualquer terra larga, mas onde estará o palácio se o não ficarem
ali ?"


Fernando Pessoa
I've got 365 ideas, but I'll end up using none
Don't know why people nowadays are so obsessed
about being number one.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Menininha

Mas a gente mal se conhece, era o que ela diria, sorrindo sem graça, cética, indiferente. Ia se esquivando de tal maneira das perguntas, dos sentimentos. Sabia que as pessoas você ia conhecendo aos poucos, até o dia em que sentia que as conhecia, então depois viria o dia em que perceberia que nunca os conhecera. O desejo da completude novamente entrava em conflito com a certeza de que ninguém era confiável, mas a solidão era tão, tão insuportável! As pessoas ao redor sorriam, abraçavam, tentavam se aproximar. Ela se sentia sufocada. Ao chegar em casa, contudo, seu coração denunciava a possibilidade de implodir.
A gente mal se conhece, mas eu até gosto de você. Seu sorriso me acalma, sua voz me acalenta - seu abraço não é apenas um substantivo, é um lugar. Com você por perto, todo o resto se desvanece - dentre preocupações e medos -, ficava calma e em paz.
Não sei se te conheço, mas dependia dele de maneiras que desconhecia.
Você não me conhece, eu nunca te conheci, mas não queria ter que viver sem você.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Passou muito tempo pensando a respeito do que ia escrever e, por conseguinte, o que ia esquecer. Tinha apenas uma vaga noção, uma superfície de sentimento, uma idéia que se desfigurava a qualquer menção de análise profunda. Ultimamente andava achando tudo que seus amigos diziam meio poético. Ultimamente tinha a impressão de que sentia a dor alcançar profundezas que nem devia possuir - o âmago, as entranhas, os recônditos do ser.

Queria começar assim: estou começando a achar que você é só uma idéia minha, coisa da minha cabeça. Desfigurada, disforme, envolta pela névoa, intocável. Apagou o que tinha escrito um pouco depois - todas as pessoas eram apenas idéias que se fazia delas, aquela era uma regra e não a exceção.

Ultimamente andava achando tudo que seus amigos diziam meio poético. "Você me constrói e eu te destruo".

Sonho

Ela revelou meio sem jeito que estava com muito sono, que teria de ir embora. Ele apenas assentiu, dividido entre a compreensão e a decepção. Ela revelou timidamente que vivia com sono agora, não sabia o porquê (se é que havia uma explicação). Não obstante, ele quis saber o porquê. Ela deu de ombros, balançou a cabeça, brincou com uma mecha no cabelo, estalou alguns dedos... Não sabia bem o porquê. Fitava as unhas pintadas que estavam um pouco descascadas enquanto confessava que talvez estivesse doente, talvez estivesse deprimida. Sabia que depressão era uma coisa séria, então não era uma depressão de verdade, talvez só estivesse "meio deprê". Às vezes você só tá precisando sonhar mais, disse ele simplesmente.

Asa de borboleta

Seriam mesmo as coisas mais tristes as mais bonitas? A felicidade já foi acusada de ser rasa, efêmera e passageira. Mas não estaria justamente aí a sua beleza inerente? Pobre réu indefesa: era acusada devido à incapacidade de seus promotores de injustiça, incapazes que eram de capturar aquela própria essência tênue que a caracterizava, de saboreá-la em seu próprio aspecto frágil e quebradiço - queriam agarrá-la com garras afiadas e, num intuito egoísta, aprisioná-la. E a felicidade, leve e esvoaçante feito borboleta, se não escapa-nos por entre os dedos enquanto nos atrapalhamos com tentativas frutradas de capturá-la, tem suas frágeis asas quebradas na brutalidade e na incompreensão.
-Você já reparou na asa de uma borboleta? - ele perguntou.
Ela não sabia muito bem onde ele queria chegar, então apenas assentiu com a cabeça. Era provável que sim, todo mundo já tinha visto uma asa de borboleta, mas ela não sabia ao certo se havia notado aquele detalhe ao qual ele fazia referência.
-Primeiro que as cores mais bonitas estão sempre dentro da asa, não do lado de fora. Então você tem que olhar para uma borboleta parada para realmente admirá-la. O problema é que elas estão sempre esvoaçantes, inquietas. Ao sinal de qualquer movimento, já voam para longe. Depois, tem o fato de que suas asas são muito frágeis. Dizem que se você tocar, há grandes chances que elas se despedacem... Ah! Sem contar que o tempo de vida delas é tão curto, e boa parte dele elas passam rastejando com o corpo murcho e as asas encolhidas...
Ela sorriu de uma maneira discreta e triste.
-Acho que eu entendi o que você quis dizer.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

O Espanto

Ela estava apenas deitada ali na cama dele e, com a mente vazia, limitava-se a observar. Estava inerte, a cabeça repousando sobre o travesseiro e o corpo no colchão macio. Além disso, sua mente repousava inerte no assombro. Antes de ele ter entrado no quarto, ela estava num estado semi-adormecido, mas agora, embora não estivesse mais prestes a cair no sono, não parecia ter acordado. Sentia-se como em outra espécie de inconsciência, como se estivesse em transe. Apenas observando, examinou-o enquanto colocava suas roupas, peça a peça, e como ele parecia alheio a ela - ao que estava pensando, sentindo e em como encontrava-se mesmerizada naquele momento. Ele limitava-se a lançar olhares breves e relanceados na direção dos olhos dela, que retribuíam opacos, analíticos. Estava perplexa com a seriedade dele, que aumentava a cada peça de roupa que ele acrescentava - crescendo cada vez mais a cada botão da camisa que era abotoado, à medida em que dava o nó em sua gravata e, principalmente, a cada olhar vazio que era relanceado. Ela não fazia idéia do que possivelmente estava passando pela cabeça dele naquele momento, tampouco se atentou para o fato de que provavelmente a recíproca era verdadeira. Enquanto cada gesto dele (e também os gestos que se ausentaram: a falta de um sorriso, um beijo ou uma franzida de cenho sequer) era incompreensível e indecifrável para ela - que apenas observava com assombro - para ele, o silêncio dela também o era. Para ela, contudo, era desprovido de significado que não fosse o do simples deslumbramento com o outro. Já havia percebido que a cada dia que passava ele ficava mais bonito aos seus olhos. Ficava também mais distante, mas era difícil dividir as culpas por dois e saber de quem era a maior parcela. Talvez porque fosse uma operação matemática inexata; ela não sabia, nunca fora muito boa com a matemática - e nem com relações humanas. E à medida que a distância aumentava entre os dois (ele estava ali, bem ali na sua frente e, ao mesmo tempo, nunca esteve mais longe), ela percebia que naquele vão cabiam todas as coisas que desconhecia a respeito dele. Até tomar consciência de que era um abismo infinito - e que não o conhecia em absoluto.
Não sei quando perdi o meu lugar na sua vida (se é que um dia já o tive), mas penso que foi em meio a um processo no qual você ganhava cada vez mais espaço na minha. Abrir mão de você me foi custoso, mas o fiz mesmo assim pois sabia o quão patético e vão seria fechar as mãos, fechar os olhos; agarrar-me a uma ilusão na qual eu sequer era capaz de acreditar. Ah, e como desejei me iludir! Não estaria eu sendo inflexível, intransigente, impaciente, imatura?

E hoje em dia sou eternamente grata à minha intransigência.