quinta-feira, 24 de maio de 2012

Otimismo inesperado

Vai-se assim lento, lento, a vagar. Vagaroso como a calmaria, enfim há uma harmonia entre os sentimentos, as sensações e as necessidades, e não há o receio do não-chegar. Quero-te e disso sei. Ao hesitar no querer, deparo-me com o querer-te em demasia. Suspendendo os limites e convenções, sumiram as barreiras para o querer. Quis-te de maneira maximizada, e nos mínimos aspectos. Quis-te simplesmente, sem mais conjecturar. Se me perguntasses do que tenho medo, responderia que medo possuo apenas um - o de não ser mais minha. Mas o querer-te é irrevogável, de tal forma que o defiro. Agora sou assim, só a calmaria em tempestade, pacificada sem violência, pacificada pela plenitude do querer, invadida por uma placidez de fogo brando. Purifico-me através do querer-te o bem, alcanço a limpidez das águas nascentes, seguindo o fluxo das correntes, fluída como jamais fui, como sempre almejei ser. Quero na abnegação, nessa renúncia que desfaz os nós, aliviando-me enfim com o desapego. Não há planos para a próxima semana - quiçá eles concretizar-se-ão no amanhã - tudo repousa em agitação perante à única certeza. Rufam os tambores da violência, gritam as tropas enlouquecidas, oram os missionários tornados cegos; permaneço velejando ao toque de tua brisa suave que sopraste em minha direção, tão leve que há o risco que eu me confunda com o ar, que as lufadas juntem-se às ondas do mar e sucedam em, com elas, me levarem. Não sou mais naufrágio, sinal de fogo, busca por resgate. Sou nômade obstinada que ruma juntamente com o querer; combato o sedentarismo com serenidade, as faculdades mentais restauradas frente a uma faculdade degenerada, que desintegra-se mais a cada dia. Já não sou mais loucura e desvario - tampouco o procuro ser -, embora soe insana para aqueles que comigo não ousam navegar, notadamente os que receiam naufragar.

domingo, 20 de maio de 2012

Não Chegar

Cheguei meio desnorteada. Era uma sensação com a qual já estava acostumada, o sentimento de perda de ninguém, a claustrofobia que não provinha de um claustro físico e bem delimitado. Cheguei, ainda que não fosse por inteiro. Queria estar em lugar distinto, queria a outro alguém. Cheguei, mas preferia não ter alcançado o ponto de chegada, arrependi-me por não continuar dirigindo sem direção, no carro onde tinha tudo o que precisava. Música, aquecimento, chocolate. Talvez ainda precisasse de cigarros, embora não precisase de um novo vício. Essa possivelmente é uma história comum, então talvez não valha a pena que alguém perca seu tempo passando os olhos por ela, mesmo que brevemente. Porque, uma vez que cheguei e que descrevo minha chegada como um acontecimento, na realidade nem aconteci. Permaneci calada, braços cruzados em um canto escurecido, presente em outros momentos e outros lugares, com outra pessoa presente em mim, enquanto alheia aos que me rodeavam - aos que riam esganiçadamente, aos que provocavam, que queriam mexer comigo, me fazer rir. Não sabiam como trespassar camada superior, tampouco o desejavam. Tudo o que queriam era o fútil, superficial e momentâneo. Eu, absorta em meu próprio turbilhão, como que tempestade interior e calmaria exterior, não queria nem estar ali. Ignorava-os, sem pensar nas implicações sociais. Mas se não pensava nas implicações sociais, porque havia chegado ali, especificamente? Porque o não-lugar que desejava, obviamente não existia. Queria o carro quente, a música que escolhera, cigarros de chocolate, dirigir sem direção, pois dirigir tornava-se ato que não exigia reflexão. Tornava-se ato incorporado àquele estado de espírito de não pertencer, não chegar, não rumar - não querer existir. Até que me cansava de não querer existir, por isso precisava arranjar onde estacionar, por isso precisava chegar a algum lugar. Precisava das pessoas ainda que as desprezasse, ainda que acreditasse não necessitar. Era ridícula, porque necessidade implicava comer, dormir, hidratar; e não o me sentir pertencente, o me sentir amada. A palavra certa, contudo, era de fato necessidade, porque dependia daquilo, porque sobreviver sem amor me seria impossível. Tinha consciência de minha dependência, conquanto não estivesse amando e não me sentisse amada. Ainda precisava daquilo, por isso a minha negação: por isso o não amar, e por isso a rejeição d'aqueles que me amavam.

Mudança

Certifique-se de ter cuidado com objetos frágeis. Submerja-os em isopor, encaixote, lacre. Ou não. Livre-se dos dejetos, de tudo aquilo que é perecível. Observe bem as datas de validade, atente para o mofo, a podridão. Ainda existe algo, neste instante, que não possui data de expiração? Não existe uma divisão firme entre o efêmero e o verdadeiro, o real e o desolador. Oposições e dicotomias são sistemas de compreensão falhos. Quer ficar junto, mas quer ficar sozinho. Queremos a mesma coisa, não há conflito, tampouco oposição. Esteja junto a mim quando quiseres, eu estarei de braços abertos, pois agora já não mais fecho os olhos e me fecho em um quarto escuro. Abro os braços para o mundo, aceito o que me é dado. Tome parte de seu tempo para si, eu bem sei que aproveito o meu. Todo tempo é tempo livre, tenha consciência. Por mais que haja convenções, horários e obrigações, não seja escravo do relógio: ele não é seu contramestre e sim seu ajudante. Não veja a vida como feita de oposições, faça o que quiser e o que tem que fazer porque o deseja, não porque se sente obrigado. Jogue fora o que já venceu, não prove por falta de opções - desconheço alguém a quem o gosto de ranço apeteça. Guarde o que lhe é precioso, atribua seu próprio valor às coisas e às pessoas - não há mercado para os sentimentos. Estabeleça um equilíbrio entre oferta e procura (não uma oposição), isto é certo, mas não há mercado, nem moeda de troca. Funde um novo lar, transporte a mobilia, aparelhagem e tecnologia que quiser - mas não esqueça dos objetos frágeis. Não os tranque num quarto insalubre e obscuro da memória no qual não ousa mais adentrar. Aceite-os como parte de si, do que já foi e do que pretende. Proteja-os como for necessário, para que não se quebrem na mudança.

Fluidez

A única certeza que possuía é que queria fluidez. Queria desfazer nós, desengasgar, desatar - mas tudo que tinha era a asfixia. Queria fluidez porque desejava mergulhar no rio de Heráclito, parar de nadar contra a correnteza sem sair do lugar. Suas palavras em momentos distintos não teriam significados similares, seus sentimentos transcenderiam meras reminiscências. Transcenderia e tornaria-se seu próprio fluxo de consciência, seria uma alma e não um corpo. Ilimitada, ininterruptível. Queria a fluidez nescessária para que pudesse transbordar, transviar, desviar, desapegar. Daria um adeus definitivo às ideias fixas e seguiria o fluxo daquele rio, desejando o naufrágio, para que pudesse tão somente sentir a correnteza, sem impedimentos. Não precisaria do esforço para se expressar. Sem mais delongas. Queria essa fluidez.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Superar-te é ainda não superar. Esqueço-me de ti como lembro-me de que ainda não esqueci. És um rosto encoberto por uma sombra que nunca pude desanuviar, muito menos trespassar. És meus dias quentes de angústia juvenil e expectativas pueris, quando bastava-me apenas seguir-te cegamente como a um guia, mas ainda assim sem cobiçá-lo. Bastava-me estar ali, ser envolta em sua névoa espessa - tão aterradora quanto aconchegante -, iluminar-me ainda que em sua escuridão, buscar a ti, e talvez realizar uma busca a mim mesma, mesmo estando cega. Lembro-me de fatos, como se me fossem dados através de fonte documental; contudo, sou incapaz de reavivar as sensações. Enquanto alterada por uma consciência cada vez mais consciente de si própria, reconheço sua presença em meu passado, mas não consigo mais senti-lo no presente, ou sequer projetá-lo para o futuro. "Eu sinto muito. Não é mais a mesma coisa" As palavras que tiras da minha boca, mesmo voltando-se a mim pontiagudas como flecha, ecoam etéreas, inconsistentes. A ruína de nós dois, não de mim, tampouco de ti, mas do "nós" - entidade complementar - foi a tão preciosa relação que juraste salvaguardar, ou então o esforço que não empregaste nesse sentido, possivelmente minha falta de reconhecimento deste esforço. Não há mais nada entre "nós" que não um passado que justo agora decidiste glorificar, enquanto eu o gostava quando era só o presente, feito de pequenas implicâncias, simplórias confissões, tardes num sofá. Tão somente o presente banal banalizado. Essa estranheza que encontra-se no ar é meramente o abismo formado pela intimidade compartilhada que agora, no presente, é apenas passado. Eu me encontrei de alguma forma, e percebi que era em um lugar bem distante de ti, que continuavas perdido, içando-se ao esquecimento. Mas saibas que ainda pesa-me como uma âncora no âmago, intentando puxar-me para baixo.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Quero amor

Quero amor. Qualquer amor, o amor vulgar, amor de um passante aleatório com o qual meu olhar se cruza. Um amor duradouro porque instantâneo e passageiro, preso ao momento passado, evaporado assim que cessa o toque. Quero amor de mãe, colo acolhedor, afago nos cabelos. Quero amor de amigo, risadas grasnidas, piadas jocosas, compartilhamento de segredos. Quero subir ao pedestal, ser ídolo pelo menos uma vez, "irradiar raios de sol do traseiro". Momentâneo, necessário, fugaz, fugidio, fútil, que me atinja de súbito - porém, que atinja apenas a superfície, para que eu cambaleie por alguns segundos, mas seja capaz de andar no instante seguinte. Só não quero amar. Não me faça amar, a ferrugem me corrói os ossos e já não suporto mais o desgaste.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Estava ansiosa. Aquela ideia mal lhe ocorrera, e já foi às pressas ocupar-se de tirá-la da cabeça. Não queria terminar de pensá-la, não queria lidar com as implicações morais, tinha medo de executá-la. As pessoas diziam que não tinha nada de errado, que o certo era fazer o que a gente realmente queria, que era mais importante não magoar a si mesmo do que magoar terceiros. Entretanto, esse tipo de discurso lhe soava errado. -Deixa eu tirar esse peso das suas costas. - a proposta veio desse jeito. Ela sorriu triste. -Eu já nasci corcunda. Por vezes cansava-se de sua sobriedade, isso era certo. Contudo, o conflito entre a sobriedade e a embriaguez do dia anterior era sempre o mais cansativo de todos. O simples fato de ter acordado aliviada no dia seguinte fê-la sentir como se merecesse uma estrelinha dourada. A insanidade a chamava com uma voz arrastada, com a promessa sedutora de perigo. Mas sempre que via o estrago, quando alguma culpa era passível de lhe ser imputada, afogava-se em miséria. Precisava ainda daquela palmadinha no ombro, do afago no topo da cabeça - da aprovação de alguém. -E porque você não tá feliz? -Porque tem alguém que está? -Não tem nada que põe felicidade no seu coração? Ela deu de ombros, acanhada, desconfortável. Não era por escolha própria que se sentia tão velha, tão alheia aos divertimentos comuns. "Ser jovem é uma construção", as vezes pensava com desprezo. "É um misto de ignorância, impaciência e temeridade que nunca me foram característicos". E isso era porque nunca fora uma pessoa leve, depois viria a descobrir. Desde sua primeira tomada de consciência relembravel, sabia que sentia o peso de existir, o peso de um coração que latejava; a intensidade intrínseca ao ato de puxar o ar do ambiente e fazê-lo completar todo o caminho até seus pulmões, para então soltá-lo de volta, e mesmo assim - com o peito esvaziado - não sentir leveza. Ou talvez fosse arrogância essa visão que tinha de si própria, apenas uma maneira que tinha para diferenciar-se dos demais, para saber-se superior. Isto é, se a superioridade estivesse intimamente relacionada com a infelicidade. -As vezes eu sinto como se os adultos nunca amadurecessem sabe? Eles são crianças grandes, com a única diferença de que se cansaram de brincar, ou então estão muito assustados para se arriscar, porque já se machucaram muito no processo. A outra acenou energicamente. -Eu vejo isso também. Os adultos são cheios de cicatrizes. Conforme o tempo vai passando, mais cicatrizes vão surgindo. Eles mal conseguem fazer algumas coisas que seriam simples para uma criança e até para um adolescente porque dói de mais. A punição sempre vem, e o esforço não parece ser recompensado. Acho que é porque eles já descobriram que a liberdade sonhada não existe. Não conseguia entender porque sentia dor com a perspectiva de se abrir, de ter uma conversa sincera com alguém novo. Mas já havia ouvido falar de uma explicação, embasada no condicionamento operante, no princípio da aprendizagem que era a punição. Naquele momento, não conseguira pensar em sequer uma coisa que lhe trazia alegria. Você que traz alegria pro meu coração, cara. Mas sabia que aquela pessoa não estaria sempre ali, o que consequentemente amargava sua felicidade.