quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Meu amor,

Peço desculpas se te chamo de amor precipitadamente. É que tenho alma de poeta e nosso tempo é curto. Me dou a liberdade de chamar-te assim em hipótese. No papel, em segredo, em saudade antecipada. Enquanto te aperto com braços e pernas e digo que não vou te deixar ir. É que me sinto humana como nunca antes.

Gracia

Minha amiga Karla me conheceu por apenas um dia, mas conheceu-me bem. Acho que porque percebemos o que tínhamos em comum: todas as más escolhas, a inquietude, os arrependimentos e a insegurança inevitável de quem se culpa por tudo de errado que ocorre em nossas vidas. Karla foi uma das conselheiras mais infalíveis que conheci em minha vida: em apenas poucas horas de conversa foi capaz de desferir os golpes mais fatais em algumas de minhas certezas. Era dotada de uma honestidade hoje em dia incomum até nas minhas amigas mais próximas. Talvez porque minhas amigas mais próximas não tenham tanta coragem de dizer a verdade na minha cara...

Decidi relatar a ela que certa feita, eu e uma amiga minha conhecemos um rapaz. Estivemos a conversar com ele por muito tempo, temas interessantes e bem humorados. O rapaz era interressante, muito simpático e engraçado. Não quero dizer com isso que era feio. Não era feio, não era gordo, não tinha mal cheiro. Contudo, não era dotado daquela beleza óbvia que sempre buscamos todos os dias por razão qualquer - ou sem razão alguma. Ah, a consciência de minha superficialidade nunca ajudou-me a superá-la! Mas enquanto tivermos nossa sociedade para culpar por isso, teremos a consciência limpa. Eu disse a Karla, o rapaz interessou-me, mas não o suficiente naquele momento. Tive um interesse leve e não professado, o tipo de interesse desinteressado que tenho por todas as coisas. Sou preguiçosa, você vê. Digo preguiça porque é uma simplificação do medo, medo que sinto todos os dias - de tudo e de todos. Pequena e limitada, essa é a verdade sobre mim.

Decidi seguir o fluxo habitual de escolhas fáceis: deixei o rapaz a conversar com minha amiga e fui arranjar alguém menos simpático que não pudesse interessar-me por completo nem durante mil anos de conhecimento. É mais fácil, muito mais fácil. Mas não parei nem por um momento para pensar que o rapaz simpático pudesse se interessar por minha amiga. Aí que veio o tapa na minha cara em forma de gargalhada:

-Mas como você é egocêntrica! Não acredito no que acabou de me contar, ainda mais com essa visão das coisas!

Karla tinha essa risada cheia e sonora, do tipo capaz de preencher um aposento de alegria. Eu sorri com o canto do lábio, um pouco culpada. Sabia dessa verdade, mas não era capaz de aceitá-la.

-Não é? Achar que isso tudo é sobre mim... Que eles estão agora felizes porque eu nobremente me retirei de cena! Sou mesmo ridícula, e não me canso ser assim! - então rimos juntas. O comentário foi irônico e de certa forma amargo, mas não sentia a profunda tristeza que deveria sentir com tão trágica história. Expliquei a ela o porquê: - Vou continuar sendo egocêntrica, já que você já o sabe. Creio que também haja um pouco de identificação entre nós, então você poderá entender. A felicidade dos dois não me atinge. Será que você vai dizer que estou em negação? Obviamente, eu gostaria de ter uma felicidade semelhante para mim, algum dia. Mas seria eu capaz de lidar com tamanha perfeição? A meus olhos, são ambos completamente perfeitos - tanto separadamente quanto juntos. Amo-os tanto, que não acho que seja capaz de invejá-los. Não de uma forma azeda, corrosiva. Não consigo me ver como um par complementar a nenhum dos dois. Sei que me causará grande sofrimento quando os dois tiverem que se separar... E espero poder ajudá-los de alguma forma. Não sei explicar. Mas grande parte desse pensamento é impulsionado por meu próprio egocentrismo, e pela minha auto-depreciação. Vê bem, eu não acho que conseguiria aguentar tamanha felicidade. Porque será que me conformo à solidão com esse argumento tão pobre?

Karla não estava mais com um semblante tão espirituoso. Deu um meio sorriso cabisbaixo e um demorado gole em sua cerveja. Acho que ela se conformaria à felicidade facilmente, se assim o fosse possível. Era uma romântica incurável. Eu sabia também que eu mesma não era tão grande engima: tudo se traduzia em meu egoísmo infantil. Acreditava ser capaz de heróica abnegação, talvez proveniente de uma culpa imensurável que fora gerada pela minha educação católica. Mas era também uma romântica, e esse era meu mistério e maior segredo.

Partimos para outras anedotas. Pobre Karla, estava com um coração partido. Daqueles que ainda está vedado e imutável: sua afeição permanecia intacta, mas havia sido abandonada e não entendia o porquê. Ah, com essas coisas a gente nunca sabe direito o porquê..., eu diria suspirando. Se é uma falta de querer, se é uma falta de gostar, se a distância da Alemanha à Espanha é realmente tão imbatível... Da Alemanha ao Brasil era ainda maior, e eu conhecia gente que a tinha vencido. Seria um querer maior, gostar maior... um amar?

Karla se deu por vencida, com seus supercílios limpou aquela tristeza residual em seus grandes olhos azuis, levou mais um gole de cerveja aos lábios e sorriu:

-Eu já desisti de entender os homens. - concluiu de maneira simplista.

Eu sorri e tomei sua mão na minha. Mais uma querida amiga, dentre tantas, que pensava que era culpa dos homens e uma diferença invencível entre gêneros. Só sentia compaixão por ela. Meu superego superfeminista intersubjetivo obviamente não poderia tomar partido nesse argumento.

-Antes fosse esse o problema, Karla. Eu gostaria mesmo, antes de tudo, era de entender a mim mesma.

(Se é uma falta de querer, uma falta de gostar, uma incapacidade de amar).

Mas eu tinha essa vontade absurda de falar com ele. Agora que já não tínhamos mais tempo. Agora que eu ia partir no dia seguinte. Sim, no limite as coisas ficam mais intensas. Não queria ser escrava do desespero humano. Se pelo menos eu fosse uma pessoa espiritual, se eu pudesse depositar toda essa energia em alguma crença... Mas eu tinha em mim o fogo do diabo.

-Não sei te aconselhar mais do que isso. - disse ela, preocupada - Diria para falar com ele, porque sou uma romântica. Acho que temos que dar tudo de nós.

Hm, sim, eu devia falar com ele. Ir embora com aquilo entalado na garganta não fazia sentido. Mas eu sabia o que ele diria, sabia que estava trabalhando demais, que sempre trabalhava tanto e que não tinha tempo sequer pra descansar. Não me deixava irritada o fato de que ele não tinha tempo pra mim. Nosso possível amor fora abortado desde o princípio. Decidimos contar com o acaso, e poderia ser que ao final da gestação fosse um natimorto. Para nós a vida era uma grande série de apostas, cadeias de encontros e desencontros. A distância era demais, ainda mais quando não sabíamos o que sentíamos. Eu, contudo, sentia a possibilidade. E isso era o que mais me deixava inquieta. Havia uma possibilidade, de que daquele homem eu realmente gostasse, de que com ele eu pudesse acalmar a confusão que sempre fora minha essência.

Havia uma possibilidade no impossível.

E eu o admirava mais do que a qualquer outro, porque era um adulto. Porque nunca havia me relacionado com um adulto antes, só com moleques. Com moleques de quase trinta anos. Mas como propor tamanho absurdo a um adulto? Como poderia implorar para que ele largasse suas obrigações por causa de um capricho fútil? Deveria eu também ser adulta, para que ele me admirasse também.

-Por isso nós não vamos acontecer. - conclui, enfim. - Falta loucura em nós. Falta o desvario de quem não tem nada a perder, de quem está disposto a se atirar ao precipício. Mas nós não somos abismo, não queremos consumir um ao outro. Talvez por isso nosso afeto resista ao tempo e à distância. Não sei dizer ainda.

Karla insistia: Fale com ele. Você precisa saber.

Mas a vida havia me ensinado: não havia nada que era estritamente necessário saber. Não precisava saber que meus dois melhores amigos haviam, no passado, me traído. Preferia continuar com a cega ilusão de que nós três éramos felizes e intocáveis. Quando não era a ilusão preferível à realidade? Platônica, platônica. Nasci no berço de Platão. Demorei quase duas décadas para me libertar disso, e ainda não me libertara completamente. Só quando fodia, só quando enchia a cara. Só em transe ou embriagada me libertaria de mim mesma.

Não precisava saber porque eu já sabia. Sabia, porque havia sido imensamente difícil me despedir no dia anterior. Não queria me despedir novamente. Mas mandei uma mensagem mesmo assim. "Se vier a Lisboa, me avise". Essa mensagem continua não respondida.

Por falta de querer, de poder, de amar?

Não sabia e já não me importava. Agora ele e Karla seguiam suas vidas em Barcelona, e eu já estava de volta em Portugal. A distância poderia ser facilmente superada. Mas a distância era só um detalhe.