Hoje quero sair só? Não, quero ficar em casa, em paz, com minhas músicas, meus livros, minha cama. Conhecer gente nova só ano que vem, porque o ano do jeito que está, com todos os dias fora do lugar, todos os sentimentos tardios que não consegui sentir, todos os atropelos de palavras, os desencontros das iniciativas; eu nem tento mais. Tudo se solta e desgruda das estruturas, subindo à superfície. O que ocorre vem num turbilhão envaidecido, vem como as ondas, não para varrer a praia, mas para me bagunçar: eu, que só queria ser una, que só quis ter moral, só quis ser certa. Nem sei mais qual a coisa certa a se fazer - se é não conseguir o que quero, então desisto. Agora caminho errante, isso quando caminho, quando não me arrasto sem direção, paro no meio da rua e penso "o que é isso que devo fazer mesmo?". Quando lembro-me de minhas obrigações, não consigo obrigar-me a cumpri-las. Tudo parece vão. Eu estou fora do tempo.
Todos meus dias são déjà vus, a mudança interior vem em ondas, em surtos psicóticos que me impedem de sair à luz do dia, que trancam meu quarto, que fazem de mim e minha cama um corpo único. Nada mudou, todas as salas estão no mesmo lugar, as pessoas continuam falando as mesmas coisas. Estou vazia. Como conhecer novas pessoas sem interessar-me? Além disso, como interessar os outros, interessando-me pelo nada? O chão é frio e sujo, nem por isso o rejeito, assento-me sem forças e observo o dia passar. A vida acontecendo, não pra mim. O pior não é ter sido deixada para trás, e sim não ter forças para me recuperar, para tentar alcançá-los.
Pego o meu café e sento-me em silêncio ao fundo da lanchonete. Não quero ser vista, camuflo-me com roupas cinzas e alheio-me frente ao acontecer da vida com fones que martelam o tímpano com melodia suave. Mas trago-o de volta para que possamos ter uma conversa franca, pela primeira vez.
"A vida não é um filme. Você tem de submergir".
Mas porque a vida não é um filme?
A arte imita a vida ou a vida imita a arte?, a professora indaga. Arte emite vida!, exclamo sôfrega; mas, infelizmente, as pessoas não vivem artisticamente, e sim de maneira formulaica. As pessoas dissimulam, mas não com a leveza, a graça, a paixão e a beleza da arte. Ninguém se esforça, todos estamos tão cansados.
"Porque a vida não é como os filmes, ao menos? Terei mesmo de escrever esse nosso diálogo, colocar atores para contracená-lo e pedir para que você assista para que possamos ter uma conversa franca? Mas você não será você; você será eu, o que espero de você, e quando não puder me ajudar - quando tão cruelmente me negar a realização da idealização - aí será meu saco de frustrações e pancadas. Aí terei raiva de você, aí não teremos uma conversa franca".
Mas escondo-me ao fundo da lanchonete, não quero atenção, não quero amor. Então, crio esse diálogo mental com você, você saltando-me à guisa de recordações como um alter ego.
"Porque eu não vou voltar".
"Bem, essa é sua última chance".
"Eu não vou voltar, tranque a porta, solte os cães e vá repousar, enfim. Ou saia pelos fundos e ache um novo amor, e transborde-se nele, frustre-se, mate-se, para que então possa renascer, cada vez mais completa; pare de se despedaçar, de se dilacerar. Viva esse suicídio que é amar, não pereça no ato. Pare de se sentar no sofá mirando o vão da porta. Eu não vou voltar, ainda não renasci".
"Mas devo fechar a porta sem ao menos termos tido uma conversa franca? Não consigo, por mais que você me rejeite, ainda quero te dar mais essa chance, ainda que não a queira, não tens o direito de recusá-la, é presente, é dádiva".
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