quarta-feira, 19 de setembro de 2012

O mendigo implorava, mas as pessoas não se importavam. Eu relutei mentalmente por alguns segundos, ainda que continuando ao ritmo de meus passos. Cheguei a olhá-lo de relance - nunca nos olhos - vi suas roupas imundas, seus dentes podres. Pensei se tinha algum trocado, mas poxa, só tinha uma nota de dez. E ele pedia a Deus, a todos os santos, aos meros mortais. Sua voz era rouca e, pouco eloquente, muito ansioso, atropelava vogais. Parecia desesperado. Mas eu não sentia seu desespero. Eu me preocupava com coisas outras - amor, liberdade -, eu tinha aquela fome como ideal, não a sentia no estômago. Não me preocupava com o que comer no jantar, e sim se você iria voltar a tempo e conversar comigo sobre seu dia. Pisquei, vi seu rosto em minha fronte, sua expressão desafiadora e o mendigo esvaiu-se de minha memória. Montei um cenário para nós, e você ainda se preocupava em infiltrar em minha mente. Mal sabia o enorme espaço que já ocupava como delegação oficial, e queria ser espião sorrateiro. Eu daria apenas um sorriso apologético como resposta ao seu costumeiro "O que você está pensando?"

-Às vezes me pergunto se é porque seus pensamentos são tão complexos que você não sabe traduzi-los para os leigos.

-Na maior parte do tempo, é que não penso em nada.

Não penso no que terá para o jantar, sei que vai ter comida. Mas tal certeza não me basta. Quero amor e quero liberdade. Penso em comida, mas em meu modo burguês [filha de profissionais liberais pseudo intelectuais], buscando o prazer gastronômico, fazendo das refeições horas de lazer, não de realização da necessidade fisiológica. Não uma necessidade, jamais necessidade. O que eu realmente precisava era de amor e liberdade. Não pensava em dinheiro. Mas precisava de roupas novas, que não estivessem impregnadas com seu perfume, precisava de sapatos novos, que não estivessem classificados por seus adjetivos, sapatos que não fossem "engraçados".

"Para superar um amor platônico, só uma foda homérica", dizia o grafite na parede branca.

Mas sei eu se ao menos Platão amou e Homero fodeu? Não, pois não são sequer homens reais, ao menos não são pertencentes à minha realidade. Platão e Homero não eram burgueses, que crime seria classificá-los na categoria de homens de nossa época! [Não sabemos nem se Homero foi uma pessoa, não sabemos se Platão amou]
Os pedreiros passam por mim e também evito encará-los de frente. Fixo um ponto no horizonte e continuo obstinada, enquanto lacrimejo. Devem atravessar o rio, rumo às suas casas nesse final do dia. Trabalham em nossas casas, e depois atravessam o rio para o cheiro de esgoto e moscas varejeiras. Sou incapaz de olhá-los nos olhos, enquanto uma ânsia invade meu ventre, e não é a fome: terá você voltado para casa? Ou também atravessou um rio?

Sinto fome. Olho os mais diversos alimentos e ingredientes no armário. Tenho preguiça. Pego um pão, abro com os dedos e passo um pouco de manteiga. Forro o estomago, mas ainda não me sinto saciada e você não está aqui. Vejo o dia se desvanecer observando, do sofá, a sacada. Preciso de roupas novas, mas não ligo pra dinheiro. Minha necessidade não vem do desejo de ostentação, e sim de um apelo desesperado à renovação. Se não posso renovar meu espírito, queria ao menos mudar minha imagem. Tentar ser outra, já que as máscaras que mais importam ao mundo burguês, e não a questão da fome.

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