segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Hugo

Hugo não me amava. Não é possível que se acredite nesse papo furado de que ele me amava de uma maneira diferente. Eu sei. Porque eu ficava febril quando passava algum tempo que nós não nos víamos, porque eu que fiquei de cama todas as vezes que ele tinha trabalho demais para pode me ver, porque eu entrei em colapso nervoso ao perceber que ele não se esforçava nem metade do que eu me esforcei. Tantas energias gastas em vão, e ele ainda escapulia para ir no bar tomar uma cerva com os brothers. Dizem que é nessas coisas que a diferença entre homens e mulheres se mostra de maneira brutal, quando eles precisam desses pequenos escapes do stress que aparentemente nós provocamos, e nós somos incapazes de compreendê-los. E eles não são capazes de compreender porque isso nos magoa desse tanto.

O ponto é que ele não moveu uma palha. Continuaria comigo, mas não por amor, sim por conforto, por imobilismo. E o desespero de minha paixão não pôde lidar com tamanha crueldade. Sim, pois era em sua infinita gentileza que repousava a agudeza de sua crueldade. Era tortura. Fingia que se preocupava, fazia-se de atencioso, incorporou o próprio Shakespeare da primeira vez que ameacei deixá-lo, equiparou seu amor à imensidão dos céus e dos mares, elevou-me ao pedestal de Julieta, comoveu-me e conquistou-me com suas palavras. Mas me perdeu justamente por sua falta de ação. Sua falta de sofrimento, de intensidade, de paixão.

Nunca saberei se fui insana, deixando um homem tão bom e tão realizado escapar. Sim, era o que todos diziam. Perdi um partidão. Ninguém entenderia que foi Hugo quem me deixou escapar. E eu me demorei o máximo que pude ao trancar a porta, brincando com o molho de chaves e forçando um sorriso para ele. Meus cabelos caóticos e os lábios retorcidos deviam dar-me a aparência de um espantalho, tenho certeza. Mas ele permaneceu inerte, olhando-me com seus olhos aquosos. Nunca derramou uma lágrima, outro indício de que não me amava. Eu que passei tantos dias chorando por ele, chorando por qualquer coisa que me lembrasse a tragédia que era amar tão desesperadamente e ser tão ignorada. Ele conseguiu sorrir. Certamente, foi um sorriso triste, já nostálgico pelos afagos que eu não mais concederia, pelos gemidos insanos que ele não mais ouviria, pelas únicas 5 receitas que eu sabia cozinhar (3 massas, 1 assado e 1 sobremesa) e que ele não mais apreciaria, meio enjoado mas sempre solícito, soltando sempre um Hm, que delícia, amor que só me convenceu da primeira vez, depois passou a me irritar mais do que o silêncio que dominaria o resto da refeição.

Hugo foi o único que partiu meu coração dessa maneira inexplicável, irremedável. Talvez daqui há alguns anos eu tenha de alterar esse trecho da minha história, e possivelmente agora sou incapaz de pensar com objetividade. Já tivera outros envolvimentos amorosos, mas ninguém fora tão cruel em sua gentileza. Eu padecia de calafrios mesmo estando em seus braços, mesmo sentindo sua respiração em minha nuca - por mais que seu corpo tivesse estado sobre o meu há poucos minutos. Hugo - a pessoa real, Hugo Gouvêa Barbosa - era um cadáver. Movia-se moroso, meditando sonolento. Mormente, era zumbi, sonâmbulo, trêbado. Executava suas funções no modo automático, e agora mudo de ideia e digo que se achegava mais a um robô do que um semi morto. Mantinha sua relação comigo no modo automático. Chegava a escutar um quê de voz eletrônica enquanto eu escovava meus dentes e ele chamava Amor, vem pra cama. O problema não era a mesmice, era a falta de encanto. Estavam os dois tão intrinsecamente interligados?

Então, porque eu sentia essa falta filha da puta dele? Porque pensei em eu própria abrir meu peito com um facão, para sentir a vermelhidão e ouvir uma pulsação que andava demasiado baixa? Como consegui passar duas semanas de cama, só saindo para executar minhas necessidades fisiológicas e provar refeições parcas e absurdas? (uma cenoura, uma barra de chocolate, um saco de amendoim). Só podia ser porque eu o amava de verdade. Hugo não ficava de cama. Ele pestanejava, levemente surpreso como assim você quer me deixar? mas então conformava-se com o acontecido, simplesmente. No instante seguinte. Não contestava. Não impediu-me de partir. Não deixou escapar sequer um lamento, um soluço esganiçado, uma palavra chula. Raramente xingava quando estava falando comigo. Por isso acho que era um robô, sempre tão controlado, tão calculado, cabelos escovados, camisa social bem passada, fazia o nó da gravata e beijava-me com lábios refrescantes de Colgate.

Achei que estava partindo rumo a algo melhor, maior. Que conseguia ver o universo por muitas perspectivas, em vez só daquele mundinho fechado em si que eram as tardes de domingo e as noites pacatas naquele apartamento. Qualquer coisa seria melhor do que o fato reiterado comprovado diariamente de que ele não me amava. Livrar-me-ia da angústia juvenil, dos surtos psicoses neuroses diários, dos choros torrenciais abafados no banheiro, com o chuveiro ligado. Claro que ele me escutava, apesar de tudo. Mas nunca disse nada, só me envolvia em seus braços e beijava repetidamente meus ombros e minha nuca. Hugo não me entendia, mas isso seria facilmente perdoável se ao menos me amasse. Talvez não me entender o carcomesse de maneira bruta, e ele parava no ponto inicial de sua incompreensão para não deixar que eu o consumisse com meu desespero, para que eu não o engolisse, para que ele não passasse a enxergar o mundo em tons sombrios como eu enxergo. Todo seu sistema haveria de ruir, pane, curto-circuito. O motor dele estava fundado em suas crenças simples de classe média, enquanto conseguisse ter seu bom apartamento, ter um bom carro, um bom emprego, poder tomar umas cervas com os brother, assistir o jogo do Flamengo, viajar pra praia, ter um bom plano de tv por assinatura... Como era possível que eu o amasse?

Era porque eu queria ser como ele. Não via nada de errado em ser como ele, almejava aspirava desejava ávida impaciente sôfrega bêbada louca drogada maluca pirada piranha descabelada caso de hospício. Mas por alguma razão eu não era que nem ele, eu era eu. E ele não tinha sido comigo como eu desejei que fosse. Pra falar a verdade, ele não deixava nada faltar. Sempre atencioso e gentil - em excesso, em demasia, em descomedimento. Como que por costume. Como que por boa educação, como se eu fosse uma criança precisando de cuidado e supervisão. E bem, pelo modo como agia - e ainda ajo - talvez seja isso mesmo. Mas não buscava nele um pai, e sim um amante, não queria um supervisor, e sim um companheiro.

Talvez Hugo me amasse. Mas se ele amasse com certeza, teria eu sequer dúvida disso? Não devia sentir o amor emanando de seus olhos, expelido de seus poros? Eu parti em desvario, quis voltar no segundo em que cruzei o corredor, mas conhecendo Hugo, sabia que ele não estaria esperando perto da porta. Não, ele teria no máximo suspirado pesadamente, e se dirigido à cozinha para terminar sua xícara de café antes de partir para mais um dia enfadonhamente programado na burocracia. Ah, mas ele era um homem importante!

Se Hugo me amava ou não, não é nem mais a questão. Pergunto-me se deixá-lo foi ato de loucura ou de compaixão, e não chego jamais à uma resposta! Quantas noites de sono Hugo já me tomou... Se fosse só isso. Ele tirou também minha perspectiva, minha risada pelo nariz que sempre saia com muita facilidade, minha confiança em mim mesma. Quisera eu ser como ele, um bem sucedido burocrata. Eu sei que não escolheria uma doida como eu como companhia. Não, eu me casaria com uma menina simples de cabelos longos que já saberia o nome dos nossos dois filhos e do cachorro. Sei que tudo que ele me tirou, foi porque eu joguei pela janela. Hugo jamais tiraria algo de alguém, ele é bom demais, muito íntegro, certinho.

Mas ele me deu uma tragédia para escrever. Agarro-me a meu próprio drama, aninhando-o junto a meu peito como a mais amada cria da prole, exalo seu perfume e agora o deixo fluir pelos dedos. E agora vejo como sou banal, e nem padeço por um motivo original, nem de maneira nova. Agonizo, mas não rastejo.

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