"Ah, mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu
desminto. Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que
se já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas –
de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. O que eu falei foi
exato? Foi. Mas teria sido? Agora, acho que nem não. São tantas horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo
recruzado. Se eu fosse filho de mais ação, e menos idéia, isso sim,
tinha escapulido, calado, no estar da noite, varava dez léguas,
madrugada, me escondia do largo do sol, varava mais dez,
passava o São Felipe, as serras, as Vinte-e-Uma-Lagoas,
encostava no São Francisco bem de frente da Januária, passava,
chegava em terra cidadã, estava no pique. [...] Mas
eu fui sempre um fugidor. Ao que fugi até da precisão de fuga.
As razões de não ser. O que foi que eu pensei? Nas
terríveis dificuldades; certamente, meiamente. Como ia poder
me distanciar dali, daquele ermo jaibão, em enormes voltas e
caminhadas, aventurando, aventurando? Acho que eu não tinha
conciso medo dos perigos: o que eu descosturava era medo de
errar – de ir cair na boca dos perigos por minha culpa. Hoje, sei:
medo meditado – foi isto. Medo de errar. Sempre tive. Medo de errar é que é a minha paciência. [...]
Acho que o espírito da gente é cavalo que escolhe
estrada: quando ruma para tristeza e morte, vai não vendo o que
é bonito e bom. [...]
Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa
importância. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte
ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse
diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é
que eu conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de
recente data. [...]
Toda saudade é uma espécie de velhice."
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