Você
me vem como uma visita inesperada de um parente de terceiro grau. Há uma certa familiaridade
no encontro imprevisto, um cheiro de bolo da vó e café passado a pano, um calor
fresco embaixo de uma mangueira. Mas é só um décimo da sensação. O que
predomina é o incômodo. Resgatar o gosto, o aroma, o frescor, é impossível. Não
sou eu quem vai te contar que você me abusou.
Você
não é o parente de terceiro grau - sequer percebo que eu e ele jamais nos comunicamos para além de encontros esparsos ao longo de um decênio. A presença dele, com todas suas perguntas burocráticas, é constrangedora, mas esvai-se com sua sombra. Já a sua inexistência é maciça. Não sei como apagar
definitivamente: água sanitária no cérebro? Será que eu tenho que te contar que você me abusou?
Eu
lembro que o bolo era de coco e o café a gente encharcava de açúcar porque
paladar amargo não pertence à língua infantil. Meu café hoje é puro. Você tinha todas as palavras
doces armadas em forma de gancho para dilacerar meu eu interior. Me fez sangrar e regurgitar de maneira literal. E você não sabe mesmo que me
abusou? Não há um segundo de repouso. Minha cabeça se choca contra um
travesseiro de chumbo. O amor do único que me amou: violência.
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