terça-feira, 1 de maio de 2018

Uma viagem


Depois de tanto buscar, sinto-me em casa na negação de um lugar. A multidão organiza-se em filas, enquanto espero indiferente aos relógios, surda aos anúncios e chamadas. Pertenço em alheamento – entrelaçando meus dedos com meu medo. A espera é meu momento de repouso, de negação do horizonte atrás da serra. Ir de encontro a alguém: nem sequer me recordo. Sou passageira de minhas próprias intenções, alheia à destinação final. 

A solidão é o aprendizado de uma vida toda.

Enquanto busco o concreto, o semáforo, os carros, os tijolos compõem a paisagem imaterial que arde em meus olhos. Imito seus contornos, exaurindo formas geométricas simples. Traço uma linha de encontro a ti. O triângulo se expande, pontiagudo, oblíquo - mais corpóreo que a cidade.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016



Você me vem como uma visita inesperada de um parente de terceiro grau. Há uma certa familiaridade no encontro imprevisto, um cheiro de bolo da vó e café passado a pano, um calor fresco embaixo de uma mangueira. Mas é só um décimo da sensação. O que predomina é o incômodo. Resgatar o gosto, o aroma, o frescor, é impossível. Não sou eu quem vai te contar que você me abusou.
Você não é o parente de terceiro grau - sequer percebo que eu e ele jamais nos comunicamos para além de encontros esparsos ao longo de um decênio. A presença dele, com todas suas perguntas burocráticas, é constrangedora, mas esvai-se com sua sombra. Já a sua inexistência é maciça. Não sei como apagar definitivamente: água sanitária no cérebro? Será que eu tenho que te contar que você me abusou?
Eu lembro que o bolo era de coco e o café a gente encharcava de açúcar porque paladar amargo não pertence à língua infantil. Meu café hoje é puro. Você tinha todas as palavras doces armadas em forma de gancho para dilacerar meu eu interior. Me fez sangrar e regurgitar de maneira literal. E você não sabe mesmo que me abusou? Não há um segundo de repouso. Minha cabeça se choca contra um travesseiro de chumbo. O amor do único que me amou: violência.

domingo, 28 de agosto de 2016

BALADA DO FESTIVAL
Hilda Hilst


II

Já não sei mais o amor
e também não sei mais nada. 
Amei os homens do dia 
suaves e decentes esportistas. 
Amei os homens da noite 
poetas melancólicos, tomistas, 
críticos de arte e os nada.

Agora quero um amigo. 
E nesta noite sem fim 
confiar-lhe o meu desejo 
o meu gesto e a lua nova

Os que estão perto de mim
não me veem… Estende a tua mão. 
Ficaremos sós e olhos abertos
para a imensidão do nada.

quinta-feira, 28 de julho de 2016



Você já leu “A insustentável leveza do ser”? É que tem uma parte sobre isso, sobre nossa vida ser só um rascunho que não vai dar pra passar a limpo. Que mais? Só isso, que eu me lembre. Não me lembro muito, talvez eu esteja inventando. É, eu vivo através desses livros mesmo, e depois que eu termino não consigo nem lembrar direito sobre o que eles falavam. Talvez eu invente. Sabe o que? Também não sei o que é o amor na vida real, mas se você quiser posso te mostrar um trecho do Cortázar sobre isso. Ou Hilda Hilst sobre o desejo. Ah, mas esse desejo eu sei bem como é. Já gozei por causa de um poema dela, foi melhor que muito sexo. Não é querendo ser pedante não. E você acha isso mesmo da vida? Não tem cultura, só instinto animal? Parece que eu sou o contrário, não tenho mais instinto nenhum; saiu numa sangria de corte de página de livro. É, aqueles bem chatinhos que são finos e ardem para cacete. Quando eu vi só sobrava referência em mim, e de eu o que ficou? Não sei. Mas pra quem eu to falando, se você não tá escutando? Sabe qual foi a pior coisa da minha bad trip de ácido? Eu achava que eu ia ficar presa na minha cabeça pra sempre. Já é tão difícil que eu queira e consiga sair, fico só olhando as pessoas, inerte, aparvalhada, me recusando a agir. Talvez por isso que eu goste do encontro das águas com o céu no horizonte, é estável, não importa de onde você esteja observando. Sempre 180 graus, sempre intransponível, inalcançável. Que papo chato né? Lembrar que já tive com quem estudar a composição do horizonte acreditando ser poeta me deixa um pouco triste. Acho que eu fico nessa só tentando encontrar as justificativas pra não me mover. Sim, você tem razão, se mover é um instinto também. Quando sentimos fome, procuramos comida. É mesmo? Quando a gente tá sozinho a gente procura alguém e fode? Nossa, pra mim é o contrário. Eu me sinto ainda mais sozinha. Acho que por isso que eu não trepo mais. Sério que as pessoas se sentem menos sozinhas porque elas trepam? Bem, não tô julgando não, eu até já fui assim. Trepava muito, até. Quer dizer, de repente nem era tanto, mas hoje em dia até parece que foi. O bom é que não dava nem tempo pra pensar. Mas e se eu te disser que eu nunca gozei do jeito que eu gozei praquele poema? Vai ver eu sou mesmo é assexuada. Não tô criticando de jeito nenhum quem é obcecado por sexo, longe de mim. Todo mundo é um pouco (ou muito). Acho que eu tenho é um problema com expectativas. Nunca broxei tão fácil quanto quando me disseram que queriam me ver gozar. Aí pronto, já era. Fiquei consciente na mesma hora que ia ter que gozar pra agradar outra pessoa e não a mim mesma. Que coisa doida, né, eu sei. Egomaníaca. Me sinto pressionada e não consigo fazer nada direito quando parece que alguém espera alguma coisa de mim. Nem isso. Mas gozar não é fácil não, você deve estar falando essas coisas aí sobre foder desse jeito porque é homem. Não, claro que tem mulher que faz sexo casual, pelo amor de deus, não foi isso que eu disse. Existe um número infinitamente maior dessas mulheres do que homens que sabem fazer uma mulher gozar, infelizmente. Sim, é lamentável. Todo mundo tem que trepar quando quer, com certeza. Mas vai dizer que a gente não tem que querer o tempo todo? Porque? Hoje em dia se vende um tipo de liberdade sexual que faz as mulheres fingirem que tão gostando de qualquer merda que vocês aprendem em filme pornô que nem de longe faz uma mulher sentir prazer. Vai começar a tirar onda que você sabe chupar uma mina como ninguém, é? Às vezes vocês parecem o mesmo disco arranhado. Melhor voltar pra dentro da minha cabeça.


Terra arrasada. Não há um ser humano à vista. Rebusco involuntariamente. Busco refúgio. Monto sinal de fogo na superfície insólita. Não encontro as palavras, somente comandos burocráticos. Mas é que ele não me deixa terminar uma só frase! Sinto o hálito de sangue escapando pelas frestas do sorriso branco. Sinto as garras pontiagudas disfarçadas no abraço amigo. Eles não percebem que a leveza que exigem me é impossível? É um mundo tingido de cinza por Xanax. 
     
          Ouvindo Shire, tive que me atear em fogo quando vi que os homens se aproximavam.